Num tempo em que se desconfiava de tudo e todos,
pois um clima de suspeição e medo pairava no ar, o escritor paulista Ignácio de
Loyola Brandão, neste conto A Descoberta da Escrita, traça o retrato da
sociedade brasileira nos tempos da Ditadura Militar.
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entava escrever e eles surgiam, levando
todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem
recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolhiam o que estava sobre a mesa.
Tentou
mudar de casa, não adiantou. Eles chegavam apenas a caneta tocava o papel. Como
se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente
por eles, como o infra-som para um cachorro. Levaram todos os papéis.
E
quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sem a requisição oficial.
Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas
estabelecidas.
Desvio
de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que
o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E quando quis comprar
um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um
chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas,
escreveu nas paredes.
E
pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre o escrito.
Escreveu
novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele
procurava caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso,
antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre
as quais era impossível gravar alguma coisa.
Experimentou
panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles
também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se
confundiam.
Eles
não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia
a dia, minuto, segundos. Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada,
simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis,
estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois,
cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel,
clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram,
arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele
tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do
tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes,
sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou
o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria
cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha
sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou
estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões,
desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a
perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou
a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia
trabalhar, sem parar.
E o
cinzel formava, lentamente, as, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.
Do
livro O Homem do Furo na Mão e outras histórias
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