segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

LIMA BARRETO: A LITERATURA LIBERTÁRIA



Ao     final    de   sua    obra   Dom    Casmurro,  o     grande escritor Machado  de  Assis,   mestre   na   arte  de ironizar os trejeitos  inautênticos da  burguesia  insípida  que  era  a sociedade    brasileira   de   seu    tempo,   disse:    “ Agora vamos à história dos subúrbios”.  Mas, não foi. 

Essa árdua tarefa coube a Lima Barreto. Não que o Bruxo do Cosme Velho fosse desprovido das condições para descrever os tipos peculiares que perambulavam pelos embriões do que seriam as atuais favelas. Não o era. 

Machado de Assis sempre foi um observador perspicaz do ser humano e do inter-relacionamento deste nos agrupamentos sociais. Pois era um mestre na análise e compreensão das periferias do capitalismo. Acontece que competia ao Lima Barreto trazer à superfície esses personagens subterrâneos, consequência da nova sociedade que se moldava no Brasil do início do século XX.

Por isso, sua obra passeia pelos os tempos da República Velha, pela formação do Brasil que nela se consolidou, dando voz ao deserdado da  sorte. Nela podemos ver as agruras daqueles pertencentes às classes sociais inferiores e os efeitos psicológicos decorrentes do correlato jogo dos papéis impostos pelo status atribuído.

Como ilustração disso, tem-se, de um lado, a visível submissão das elites em relação à Europa pela suposta superioridade, pela raça, pelo nível civilizatório; e do outro, o povo frente às elites econômicas e políticas, considerado por estas como escravos, dependentes, agregados, protegidos, afilhados, serviçais, jagunços e colonos.  

No alvorecer desses acontecimentos estava Lima Barreto, com a perspicácia dos grandes sociólogos, mas descrente do determinismo científico tão bem aceito por nomes como Durkheim e outros expoentes à altura deste. Isto porque nunca foi um “pequeno burguês”, segundo expressão cunhada pelo ativismo Marxista, pois jamais se limitou a uma visão de mundo acomodada  à ideologia das classes superiores.

Lima Barreto foi um rebelde solitário que usou a literatura para denunciar a sociedade em que lhe coube viver. Um ativista inconformado na luta contra as desigualdades e a submissão das classes inferiores, um defensor dos deserdados. O grande escritor brasileiro. Pois escreve com a alma na ponta da sua pena. Nunca foge da vida. Ao contrário, mergulha nela até as zonas abissais, a fim de trazer à tona a culpa de todos pelas disparidades existentes. A culpa do acaso pelas misérias de tantos; a culpa dos deuses e dos homens pelo tormento de tantos inocentes.

Lima Barreto conviveu com o vício e a loucura, sem, contudo, deixar de manter-se sóbrio para denunciar a “loucura da lucidez”. Nesse jogo dos acasos irracionais, sua literatura era o resultado do ”ajuste do eu aos imperativos do acaso”. Acasos de todos os tipos: genéticos, sociais, circunstanciais... 

Acasos que  fizeram de um “João ninguém” um grande escritor de percepções de verdades. Uma espécie de profeta, assim como Machado de Assis, do encontro que algum dia todo homem há de ter consigo.

“Há duas engrenagens que não se ajustam. A da sociedade e a do artista. Na dialética de seus conflitos dissolvem-se as ambições em rotinas grosseiras, perdem-se os sonhos em sua própria irrelevância. Lima Barreto é a explosão deste desajuste, num grito que a sociedade não quer ouvir. E por isto o sufoca. Machado, por outro lado, é a expressão de um silêncio obliquo que se esconde na ironia e por isto a sociedade o aceita. Os dois são grandes. Creio ser um deles maior que o outro, pela coragem frontal da denúncia perigosa”. 

“A coragem frontal da denúncia perigosa” a voz dos deserdados, a alma do subúrbio antigo, “a expressão da miséria moral que soterra a esperança dos simples e a reduz a uma resignação que se define como suicídio existencial”.

Sua força em denunciar as mazelas sociais de seu tempo, através de sua literatura, propositadamente, sem rebuscamentos, sem floreios desnecessários, sem pieguices, sem a capa protetora do Parnasianismo, fez de Lima Barreto exemplo de luta pela emancipação de toda sorte de deserdados da República que os confinara nas masmorras inescapáveis da miséria humana.                         

Por tudo isso, é perfeitamente possível, e plausível, encontrar traços de simetria entre Lima Barreto e pensadores que transcendem a própria condição social para combater as misérias do mundo.  Assim, como o fez Karl  Marx, que viveu sua vida e sacrificou sua família para denunciar injustiças e encontrar logicamente as suas causas, assimilando a posição de classe do operariado, em meio às forças que se desdobram nas relações sociais como a dialética do poder, o problema do Estado, da burocracia; a situação da mulher e a literatura possível numa sociedade que padece de alienação estrutural.

Destarte, Lima Barreto se insere entre os pensadores libertários, cuja audácia plantou nestas terras tupiniquins a semente da coragem para se posicionar contra os grilhões, as injustiças, os atavismos de uma sociedade que até os dias atuais se furta, pelos métodos mesquinhos e covardes, ao confronto consigo, negando a única maneira de se desvelar e se compreender enquanto território possível de emancipação.

Lima Barreto era, enfim, um filósofo da contra-opressão. 

Por: Adão Lima de Souza

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