sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O maldito poeta anarquista


“Tudo muda e nada muda”. Com licença, meus caros, pois esta é a poesia de Lawrence Ferlinghetti, 99. Lançado em 1958, na livraria City Lights, em São Francisco, a obra Um Parque de Diversões, a qual esses versos fazem parte, é tida como um de seus livros mais cultuados do expoente da geração beat. Na poesia ferlinghettiana é comum abordagens de temas com cunho políticos e sociais. Durante a década de 1980, publicou o romance Amor e revolução, que narra a história de um banqueiro revolucionário que vivia em conformidade com o espírito burguês.
Apesar de começar esta matéria citando um poema que faz parte de Um Parque de Diversões, não quero propriamente discorrer sobre isso. Após mergulhar de cabeça na bibliografia dos beats Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac, inclusive provando algumas experiências tal como os mestres fizeram outrora, umas publicáveis, outras nem tanto, consigo parar um momento e refletir: a literatura beat é sim coisa de primeira. E o livro Amor nos Tempos de Fúria, lançado no Brasil em 2012, segue nessa mesma toada e, com isso, fisga o leitor da primeira à última linha.
Paris, 1968. Os estudantes da universidade parisiense Sorbonne tomaram as ruas para protestar, discursar e pichar palavras de ordem contra o general Charles De Gaulle, reacionário que combatera na Segunda Guerra. A eles uniram-se trabalhadores, artistas e músicos, sendo o estopim para uma das maiores revoltas da história. Com esse pano de fundo, Ferlinghetti idealiza o encontro entre Annie, pintora estadunidense, passional e idealista, e Julien, um cético banqueiro português que se diz anarquista de coração, assim como no famigerado livro Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, publicado em 1922.
O escritor demonstra todo seu talento para a prosa ao narrar a complicada história entre Annie e Julien. Entrelaçando um enredo íntimo de seus personagens com conflitos sociais que aconteceram naquele período, Ferlinghetti faz também uma espécie de síntese das questões políticas, sociais e artísticas que marcaram toda uma geração. Em Montparnasse, no La Couple, em Paris, no fim da noite, o leitor logo nas primeiras páginas é apresentado à protagonista. Narrado em terceira pessoa, em fluxo de consciência, o beat coloca-nos no centro do caos que estava instaurado na cidade da luz.
TÔNICA
Críticas aos sistemas totalitários, como ao fascismo do ex-socialista Benito Mussolini, que vigorara na Itália durante a década de 1930, e ao nazismo do artista plástico frustrado Adolf Hitler, que provocara a Segunda Guerra Mundial, são a tônica de vários textos que Ferlinghetti escreveu ao longo das últimas seis décadas. Lê-lo é indispensável nesses tempos em que o autoritarismo vem ganhando força na sociedade brasileira com candidaturas caricatas que semeiam discursos de ódio e fazem uma ode de extremo mau gosto à Ditadura Militar.
Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, no dia 7 de setembro de 2016, Ferlinghetti disse que o anarquismo – ideologia política que teve Mikhail Bakunin como principal expoente – sempre foi um ideal, e não uma ideologia. “Ele nasceu no século XIX, e nessa época o mundo não tinha um terço das pessoas que tem hoje. O anarquismo era possível quando não havia populações grandes”, explicou, na ocasião. “Mas hoje, a não ser que você tenha alguma forma de governo, as pessoas vão acabar matando umas às outras. De qualquer forma, é isso que começa a acontecer”, disse.
Sobre a autobiografia One Stream of Consciousness que está escrevendo, aos 99 anos, Ferlinghetti contou que o ideal seria chamar a obra de “romance-memória”. “A parte autobiográfica é desde quando sou menino e segue até tudo o que tenho a dizer como adulto. No fim das contas, sou uma criança que ficou velha e está quase cega. Esse é o fim. Não é ficção, é vida real. Não gosto do termo ficção, você diria que Cem anos de Solidão é uma ficção?”, completa. O poeta disse ainda que “o poeta por definição é um inimigo do Estado”.
Na entrevista, Ferlinghetti falou que o escritor William Burroughs, autor do clássico Almoço Nu, de 1959, “era como tanto outros doidões” na época em que os beats frequentavam a livraria City Lights. “Achei que expressava uma mentalidade de doidão, cheia de morte e ódio. Burroughs era “el hombre invisible”, veio à livraria mais de uma vez para fazer leituras, mas você via que ele não estava lá. Era como tanto outros velhos doidões, que estão presentes fisicamente, mas não estão presentes de fato. Eu nunca entrei na mesma onda que ele”, comentou à Folha.
VIDA
Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, no Estado de Nova Iorque, em 1919. Filho de italianos, seu pai morreu antes dele nascer, e sua mãe foi internada em função de problemas nervosos quando o poeta ainda era pequeno. Foi criado por uma tia materna e passou cinco anos de sua infância na França. Ao retornar para os Estados Unidos, ingressou em várias escolas até entrar na University of North Carolina, onde estudara Jornalismo. Publicou suas primeiras histórias na revista cultural Carolina Magazine.
Durante o verão de 1941, Ferlinghetti morou com amigos em uma pequena ilha no Maine. A experiência o aproximou do mar, que se tornou um dos temas recorrentes em sua obra. Em seguida, entrou para a marinha norte-americana. Serviu na Segunda Guerra Mundial, participando da invasão da Normandia, na França. Depois trabalhara por um breve período na revista Time, antes de voltar para a Columbia University, de Nova Iorque. Nela, conseguiu a titulação de mestre em literatura inglesa. Doutorou-se pela Sorbonne, em 1950, com menção honrosa.
Retornou para o EUA, em 1951, onde instalou-se em São Francisco. Passou a dar aulas de francês, traduzir, pintar e fazer crítica de arte em jornais. As primeiras traduções que fez foram publicadas na revista cultural City Lights, por Peter D. Martin, que se tornaria sua sócia na mítica livraria de mesmo nome. Um ano depois da saída de Martin, fundou a editora City Lights e lançou sua primeiro livro, Pictures of the Gone World, primeiro volume da Pocket Poets Series.

Poema de Lawrence Ferlinghetti

Tudo muda e nada muda.
Séculos findam
e tudo continua
como se nada findasse.
Como nuvens estáticas a meio-vôo
Como dirigíveis presos contra o vento.
E a urbana febre das feras do cotidiano
ainda domina as ruas. Mas ouço cantarem
ainda agora as vozes dos poetas
mescladas ao grito das prostitutas
na velha Manhantan
ou na Paris de Baudelaire,
chamados de pássaros ecoam
nas ruelas da história
renomeados.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Poemas de Boris Pasternak

VENTO

Eu acabei e tu estás viva. 
E o vento, queixando-se e chorando, 
abana a casa e as árvores à volta. 
Não cada pinheiro isoladamente, 

mas todas as árvores juntas 
de todos os infinitos distantes, 
como navios ao sabor das correntes 
nas baías brilhantes ancorados. 

E isso não por audácia 
ou por frenesia insensata, 
mas para na melancolia encontrar as palavras 
para a tua canção de embalar. 

É assim que começam. Pelos dois anos 
separam-se da ama para o enigma das melodias, 
gorjeiam, assobiam, - e as palavras 
surgem por volta dos três anos. 

É assim que começam a entender. 
E no ruído pior que uma turbina 
parece que a mãe não é mãe, 
que eles não são eles e a casa é outra. 

Que fazer da terrível beleza 
que se senta no banco lilás? 
Realmente quer roubar crianças? 
E assim nascem as suspeitas. 

Assim amadurecem os receios. Aceitar 
a estrela alta inatingível, 
quando se é Fausto, quando se é visionário? 
E assim começam os ciganos. 

É assim que se abrem, voando alto 
sobre as cercas, onde estão as casas ausentes, 
dos mares súbitos como suspiros. 
É assim que nascerão os jambos. 

Assim nas noites de Verão, de barriga 
na areia, e a súplica: Seja! 
Ameaçam a aurora com a tua pupila. 
E até se atrevem a discutir com o sol. 



SILÊNCIO

Ainda não é nascida.
É só canção e poesia,
E está em plena harmonia
Com tudo o que é vida.

O seio da onda arfa em paz,
Mas como um louco brilha o dia
E a espuma pálido-lilás
Jaz no azul-névoa da bacia.

Que em meus lábios pairasse
A quietude original
Como uma nota de cristal
Pura desde que nasce!

Volve … poesia e a canção,
Sê só espuma, Afrodite,
Coração, desdenha o coração
Que com vida coabite!


quinta-feira, 4 de abril de 2019

CLARICE LISPECTOR

O que me tranquiliza 
é que tudo o que existe, 
existe com uma precisão absoluta. 
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete 
não transborda nem uma fração de milímetro 
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. 
Tudo o que existe é de uma grande exatidão. 
Pena é que a maior parte do que existe 
com essa exatidão 
nos é tecnicamente invisível. 
O bom é que a verdade chega a nós 
como um sentido secreto das coisas. 
Nós terminamos adivinhando, confusos, 
a perfeição.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Edgar Allan Poe: O Corvo


Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso 
Batestes, não fui logo, prestemente, 
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso 
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(Tradução de Machado de Assis)