sábado, 8 de janeiro de 2011

“AUCTORITAS NON VERITAS FACIT LEGEM”

 
 
O fundamento da afirmação de uma ordem jurídica pela reiteração de seu discurso de validade.

1.0.A CIÊNCIA JURÍDICA E SUA AUTOPRODUCÃO 

A Ciência Jurídica compreende a produção, regulação dos mecanismos de produção, interpretação e aplicação de normas jurídicas aos grupos sociais. O saber jurídico se apresenta, portanto, como um espaço de poder onde se produz a legitimidade desta autoprodução.E isso se dá por meios de construções linguísticas estruturadas em discursos que por sua reiteração pretende estabelecer o fundamento de afirmação de uma ordem jurídica. Nesse processo, realidades são arquitetadas para criar a percepção de que são as normas que são adequadas a as rotinas sociais e não que estas produzem, em certo grau, as rotinas, consagrando condutas como nocivas à sociedade e instituindo punições para restabelecimento da segurança jurídica e pacificação social.

1.1.O discurso como produtor de realidades.

Todo discurso jurídico é policiado, esquadrinhado, controlado porque é produzido a partir de premissas ideológicas que se afirmam como verdades pela reiteração de que são produtos da realidade. Sendo tal verdade aceita e partilhada por todos numa sociedade, cujos valores éticos norteadores das relações intersubjetivas se fundamentariam não na correlação de forças entre o Estado legislador e aqueles que devem observância aos comandos normativos; mas sim numa construção coletiva autônoma, intuitiva de conceitos e práticas morais pelos membros da comunidade.

Fazendo-se um paralelo entre o mundo criado pelo discurso no campo jurídico com o mundo simbólico criado por Franz Kafka em O Processo, é possível vemos similitudes que deixam antever o modo como as verdades são construídas a partir das definições tipológicas dos atos delituosos, as quais, não escapando sua conceituação dos limites da linguagem, comprovam a intenção da Jurisprudência, ao prever comportamentos e prescrever sanções,de modelar a realidade conforme os seus próprios ditames. 

“Certamente, alguém o caluniara”, diz Kafka –aqui se percebe a justificação lógica, também simbólica, do mundo que será criado para Joseph K. Resta-nos, portanto, indagar sobre o que Joseph K fora caluniado. Surge então outro traço do poder simbólico do Direito, a ideia de justiça. Em que consiste afinal esse crime indizível? Será que toda estrutura burocrática, inacessível, montada com intuito não declarado de nos escravizar, de sufocar em nós nossa individualidade, de forjar em cada indivíduo uma subjetividade padronizada, não torna todos condenados, como fazemos com as crianças deserdadas a quem negamos proteção, mas,no entanto, severamente as julgamos pelos delitos afrontadores da ordem traçada, antes mesmo de qualquer crime ter sido cometido, apenas porque são necessárias cotas de marginalizados.

No discurso jurídico, a pretensão de uma autoprodução normativa a partir das mesmas premissas é ocultada pela tentativa de atribuir a Jurisprudência graus de cientificidade que a colocaria num certo patamar de relevância epistemológica em que não seria possível contestá-la com fundamentos na lógica da causalidade que permeia as outras ciências, como as naturais, ou dos procedimentos valorativos que delimitam o alcance das investigações para produção de conhecimentos na seara das ciências sociais.

Deste modo, a Ciência do Direito se reveste de neutralidade ideológica, pois, ao aplicar sua técnica na decisão dos conflitos sociais, afasta pela Deontologia, lógica do Dever Ser, os constrangimentos a que estaria sujeito qualquer julgador ao lidar com as tensões advindas das interações dos indivíduos na rotina da sociedade. E assim, isenta de valorações políticas, econômicas, históricas, psicológicas e sociológicas, a Jurisprudência procura se eximir de sua responsabilidade de ser, segundo Bourdieu (1989, p. 210), “reflexo direto das relações de forças existentes, em que se exprimem as determinações econômicas e, em particular,os interesses dos dominantes”. Para tal, o discurso reiterado de segurança, pacificação social, de justiça e legalidade se apresenta como sendo as reais aspirações da pessoa humana, devendo por tanto o Estado, por ser o único dotado de legitimidade para se valer do uso da força coativa, assegurar a todos de forma que cada um receba o que lhe for de direito, e retribua na medida do seu dever.

Concernente a tudo isso, faz-se necessário difundir a certeza de que uma ordem jurídica nada mais é que a captação dos anseios da comunidade, e que, por tanto, as relações sociais produzem o Direito e não o contrário. E aqui é preciso um discurso que incorpore e produza simbolismos. Que se abebere na linguagem, uma vez que o campo jurídico detém o “monopólio de dizer o direito”, e, a exemplo da capacidade de produzir a si mesmo, possa por meio do discurso criar o mundo do outro. Destarte, garante sua legitimidade e acolhe as “verdades” no seu interior, e depois, as exterioriza, apesar de autoproduzidas no campo da Ciência Jurídica, como elemento da circularidade reflexiva da moral coletiva.

Pode-se, então, partindo do exposto, inventariar o mundo que a reiteração do fundamento de uma ordem jurídica quer transvalorá como mundo real. Pois, tomando como instrumentos a linguagem e a racionalidade deontológica, são construídas estruturas fictícias travestidas de reais onde se conceituam condutas, definem-se os direitos. E instituições reais, que através de procedimentos fictícios de inquérito das verdades, proferem vereditos para punir comportamentos perturbadores da ideologia dominante, que por meio de artifícios discursivos o legislador luta para ocultar.

Destarte, a produção legislativa ganha destaque ao estabelecer processos e procedimentos de feitura das normas que consagram a Ciência do Direito como campo de autoprodução jurídica.Mas, para se impor como legítima recorre a premissas que denunciam sua inclinação ideológica, já que busca sua fundamentação em argumentos lógicos arquitetados pela linguagem, tais como a Norma Hipotética Fundamental de Hans Kelsen, validada pelo corte epistemológico empreendido, negando a causalidade e opondo a ela a relação de imputação; ou, ainda, pela disseminação de que o julgador é apenas “a boca da lei”, pois o que faz não é senão dizer o direito. Afastando,por tanto, a hipótese de que o julgador não declara o direito, porque enquanto enunciado linguístico a norma nada diz, e, por isso, a tarefa dele  é antes de tudo interpretar esta norma. E, ao interpretar a norma ele não diz o direito; ele cria, a partir de suas próprias premissas ideológicas, o direito.

1.2.A interpretação do direito como autoprodução do campo jurídico.

Os discursos jurídicos comportam em si, pelo menos pretensamente, as preocupações que afetam diretamente os agrupamentos sociais, acomodando, com certa facilidade em suas construções argumentativas, ideais abstratos de JUSTIÇA. Consubstanciados na tríade mágica LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE, recorrentemente enaltecida pelos que detém o veredito sobre o que é verdade.Ou seja, o poder de determinar a quem se destina o direito e de influenciar quem o declara. 

A necessidade de segurança jurídica, alardeada pela Jurisprudência, traz intrínseca a promessa de socialidade pacífica, exigindo de todos, sob sua égide, resignada aceitação das estruturas fundamentadas pelos os ditames do ordenamento jurídico, também pretensamente isento de ideologias.

Consequentemente, conceituam e definem, segundo os valores predominantes, as chamadas práticas delituosas capazes de perturbar a paz social, e estabelecem rituais de vigilância e punição que possam silenciar as vozes discordantes, acusando-as de inobservância das normas prescritas. Normas estas, conforme o convencimento imposto, moldadas segundo as aspirações sociais. Assim, resguarda-se o Direito de maiores manifestações de inconformidade da sociedade e o faz repousar no seu “berço esplêndido” de equilíbrio social e justiça natural.

Deste modo, acima do bem e do mal, a norma é justificada negando a evidência insofismável de Hobbes ao sentenciar que “A autoridade, não a verdade, faz a lei”. Porque não paira sobre os ombros do julgador o ônus da punição, ou dos destinos, mas, apenas o manejar a espada com incisão e a balança com equidade. Por isso, o Direito é representado por uma deusa que mantém os olhos vendados, reforçando-se aqui o simbolismo do qual advêm parte de sua força. Doutro modo, como concretizar a justiça: “Dar a cada um o que é seu”?

Porém, o Direito como não é simplesmente declarado, como quer a Ciência Jurídica, mas interpretado porque não há uniformidade de casos concretos que requeiram apenas a subsunção. Ao interpretá-lo, o julgador deve indagar o que é de cada um. E, assim fazendo, partirá de sua própria experiência de vida, de sua ideia de pertencimento aos estratos sociais; e, por fim, julgará baseado no direito construído a partir de suas pré-concepções. Para fundamentá-las, buscará no saber jurídico a legitimidade necessária, preservando-se sempre a segurança do ordenamento jurídico. 

Desse modo, não se furtará a cumprir seu papel ideológico, ainda que inconsciente. Como bem dissera Warat (1982, p. 23) a cerca dos mitos perpetuados nas teorias que versam sobre os procedimentos de interpretação da lei: “O saber jurídico emana da necessidade de justificar a ordem jurídica, e não de explicá-la.”

Deste modo, entendido o Direito como ciência capaz de autoproduzir e regular a produção de seu objeto no seu próprio campo, a fundamentação de uma ordem jurídica encontra sua afirmação legitimadora na capacidade de convencimento à aceitação, por parte da sociedade, do discurso por ele produzido para difundir os valores de uma classe que faz as leis para delimitar os direitos de outra que é alijada dos mecanismos de produção desse discurso. 

Nessa autopoiese, o discurso jurídico, por circularidade e capilaridade, passa a ser reiteradamente empunhado por esta classe como tendo sido o fundamento de sua afirmação produzido, não pelo embate de forças contrárias, mas oriundo da construção natural dos valores sociais defendidos por todos na sociedade.

Ademais,o saber  produzido pela Jurisprudência não consegue eliminar os questionamentos exteriores ao seu campo, por maior que tenham sido os esforços nesse sentido empreendidos, desde Kelsen até os doutrinadores que se reconhecem como progressistas na atualidade. Porque os conflitos sociais não foram ainda resolvidos, nem pacificada a sociedade pelas pseudo-soluções dada pela Ciência do Direito aos transtornos que a realidade do próprio direito impõe, ao decidir de quem é a propriedade dos meios de produção da condição de existência dos indivíduos e o monopólio de produção do seu discurso de validade, como condições inalienáveis à segurança do ordenamento jurídico e à paz social.

Pois, para Bourdieu, os recursos linguísticos ao mesmo tempo em que afirmam o fundamento de uma ordem jurídica, pelo poder simbólico em que se compõem, fundamentando através de argumentos criados pela lógica deôntica, que concebe o Direito como relação de imputação, em contraposição à causa e efeito das outras ciências, cujas leis que regem seus fenômenos são criadas pela análise do objeto de estudo, sem que este objeto posa ser auto produzido em seu próprio campo como se dá com o Direito.E, contudo, permanece o questionamento sobre qual é o fundamento da afirmação de uma ordem jurídica sem uma resposta satisfatória por parte da Ciência Jurídica.

Por: Adão Lima de Souza

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