“Nossa única ajuda para Chaves e outros (líderes ditos de esquerda) é sermos, quando eles merecem, impiedosamente críticos. É assim que os tratamos seriamente.”
sábado, 21 de novembro de 2015
terça-feira, 27 de outubro de 2015
Alain Badiou: A reinvenção do amor
O amor é um gesto
muito forte porque significa que é necessário aceitar que a existência de outra
pessoa se converta em nossa preocupação. Minha ideia sobre a reinvenção do amor
quer dizer o seguinte: uma vez que o amor se refere a essa parte da humanidade
que não está entregue à competição, à selvageria; uma vez que, em sua
intimidade mais poderosa, o amor exige um tipo de confiança absoluta no outro;
uma vez que vamos aceitar que esse outro esteja totalmente presente em nossa
própria vida, que nossa vida esteja ligada de maneira interna a esse outro,
pois bem, já que tudo isto é possível, isto nos prova que não é verdade que a
competitividade, o ódio, a violência, a rivalidade e a separação sejam a lei do
mundo.
O amor está ameaçado
pela sociedade contemporânea. Essa sociedade bem que gostaria de substituir o
amor por um tipo de regime comercial de pura satisfação sexual, erótica, etc.
Então, o amor deve ser reinventado para defendê-lo. O amor deve reafirmar seu
valor de ruptura, seu valor de quase loucura, seu valor revolucionário como
nunca o fez antes. Não se deve deixar que o amor seja domesticado pela
sociedade atual - que sempre busca domesticá-lo-. Em outros tempos, as
sociedades clericais e tradicionais buscaram domesticá-lo pelo matrimônio e a
família.
Hoje se busca
domesticar o amor com uma mescla de pornografia livre e de contrato financeiro.
Mas devemos preservar a potência subversiva do amor e afastá-lo dessas ameaças.
E isso é extensivo a outras coisas: a arte também deve afastar-se da potência
do mercado, a ciência igualmente. Ali onde há um pensamento humano ativo e
desinteressado há um combate para libertá-lo dos interesses.
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domingo, 25 de outubro de 2015
Friedrich Nietzsche: reflexões.
... Cá estais vós, amigos! - Ah, todavia não sou
eu,
Quem queríeis vós?
Hesitais, pasmai - ai, melhor seria se sentísseis rancor!
Eu - não sou mais eu? Estão diferentes a mão, o andar, o Eis rosto?
E o que eu sou, não sou mais - para vós amigos?
Vós ireis? - Ó coração, tu suportaste bem,
Forte ficou a tua esperança:
Mantém tuas portas abertas a novos amigos!
Deixa os velhos! Deixa a recordação!
Se já foste jovem, agora - és jovem de um modo melhor!
Ó saudade da juventude que não compreendeu a si mesma!
Aqueles por quem eu aguardava,
Que eu julgava transformados tal como eu,
O fato de terem envelhecido afastou-os:
Só o que se transforma continua meu amigo.
Ó meio-dia da vida! Segunda juventude!
Ó jardim de verão!
Inquieta ventura no estar perscrutando e esperando!
Espero os amigos, noite e dia disposto,
Os novos amigos! Vinde! É tempo! É tempo!
Quem queríeis vós?
Hesitais, pasmai - ai, melhor seria se sentísseis rancor!
Eu - não sou mais eu? Estão diferentes a mão, o andar, o Eis rosto?
E o que eu sou, não sou mais - para vós amigos?
Vós ireis? - Ó coração, tu suportaste bem,
Forte ficou a tua esperança:
Mantém tuas portas abertas a novos amigos!
Deixa os velhos! Deixa a recordação!
Se já foste jovem, agora - és jovem de um modo melhor!
Ó saudade da juventude que não compreendeu a si mesma!
Aqueles por quem eu aguardava,
Que eu julgava transformados tal como eu,
O fato de terem envelhecido afastou-os:
Só o que se transforma continua meu amigo.
Ó meio-dia da vida! Segunda juventude!
Ó jardim de verão!
Inquieta ventura no estar perscrutando e esperando!
Espero os amigos, noite e dia disposto,
Os novos amigos! Vinde! É tempo! É tempo!
(...)
... Quem de vós pode, ao
mesmo tempo, rir e sentir-se elevado?
Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras.
Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras.
Corajosos,
despreocupados, escarninhos, violentos ― assim nos quer a sabedoria: ela é
mulher e ama somente quem é guerreiro.
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sexta-feira, 18 de setembro de 2015
PAULO COELHO: antes de Compostela, o caminho apontado por Raul Seixas.
Na esteira da crescente produção cinematográfica brasileira, o gênero biografia tem se avolumado. As películas abordam desde as histórias de vida de irrelevantes cantores até a saga de pretensos líderes religiosos, com seus processos de curas milagrosas, desencadeados pela fé e a força da “grana que ergue e destrói coisas belas”.
Um dos mais recentes desses filmes é o longa metragem “Não pare na pista” que retrata a vida de Paulo Coelho, desde os dissabores do cotidiano de tédio e inquietude ao estrelato como escritor de espiritualidades, tão reiteradamente traduzido em línguas diversas quanto o velho bardo inglês.
Na história do velho Mago, contada com a mesma costumeira falta de traquejo cinematográfico na construção de roteiros e enredos e tramas e na frágil dramatização dos episódios reais vividos pelo homenageado, vê-se um Paulo Coelho atormentado pelo desejo de tornar-se um grande escritor. A história passa pela sua mocidade ao mesmo tempo em que é retrata a experiência espiritual vivida no caminho de São Tiago de Compostela, na Espanha, que lhe daria o subsídio para construir seus famosos livros, consagrando-se como um dos mais bem sucedidos escritores da atualidade.
A saga de Dom Paulo Coelho se processa de modo enfadonho, calcada nas divergências ideológicas com seu pai, expressas pela rebeldia juvenil, até a entrada em cena de Raul Seixas. O velho Raul resgata o personagem do caminho do ostracismo através de parcerias em sucessos inesquecíveis como as músicas “AL Capone, Meu Amigo Pedro, Sociedade Alternativa” e, dentre outras, a que dá nome ao filme: Não Pare na Pista.
A partir desse momento, o que se observa com a entrada em cena do velho Raul, é a salvação primeira de Paulo Coelho, compreendendo pelas palavras do roqueiro que as grandes coisas devem ser ditas de modo simples. Depois disso, juntos compuseram músicas que tocam a alma das pessoas há décadas, como Tente Outra Vez. Logo, pode-se afirmar que o primeiro dos caminhos foi indicado ao mago pelo Raul Seixas, muito antes daquele percorrido pelo autor de o Alquimista, em busca de espiritualidade e entendimento de si mesmo.
Por: Adão Lima de Souza
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Gênesis
Antes tudo era indizível. E os gestos não traduziam nada além das mais urgentes necessidades cotidianas. Enquanto os olhares, distantes, concentravam-se em desvelar a paisagem inocente. Nenhum movimento corporal expressava senão os limites do desconhecido, porém, secretamente desejado. Assim, passavam-se os dias enfadonhos!
Um dia, os olhos se encontraram; e, refletiram-se um no outro como dois espelhos postos frente a frente, em que as imagens se multiplicam indefinidamente. Daí em diante, a incompreensão se estabeleceu entre eles, ocupando o desvão das palavras até então nunca ditas.
Enquanto o tempo fluía como as águas mansas de um rio, a estranheza se apoderava dos corpos, trazendo à superfície da pele descobertas sobre os sentidos refreados pela incipiência da imaginação. Nunca mais os dias foram os mesmos. Agora, as coisas pareciam ter cheiro e sabor que penetravam agudamente nos poros. A respiração em descompasso, prenunciava a proximidade das transgressões que se sentia fincar na vontade, cavando sucos profundos na carne com a faca afiada dos desejos contidos. À noite, as estrelas adquiriam formas e nomes; e o frio se intensificava, confirmando o absurdo da existência intransponível do muro imaginário erguido pelo distanciamento dos corpos que se queriam.
Naquele instante, em que revelações pululavam ante os olhos atônitos, porém, irresistivelmente atraídos pela incontrolável carência de se lançar ao desconhecido, toda existência ganhava a tonalidade das cores por eles inventadas, ao mesmo tempo em que os corpos, agora nus, eram emoldurados pela confabulação. E de repente, os dias pareciam se deixar envolver pela lentidão, assumindo ares de eternos como se fosse um deus caprichoso que se recusasse a seguir sua infinitude. Todavia, eram dias prazerosos, de calmaria e de uma apetecível angústia que os envolvia e os embalava na rede intangível do querer.
E, assim, aos poucos, na esteira inarredável dos acontecimentos, foram ruindo as fronteiras invisíveis, que outrora mantinha na ignorância seus corpos moldados para a entrega incondicional ao prazer, retendo-os à beira do abismo desse estranho sentimento que nos faz desafiar os deuses. Então, sem se aperceberem do pecado que cometiam, folgaram as amarras que os sufocavam, desatando às pressas os nós da proibição, para que os corpos sedentos pudessem, suavemente, percorrer as formas sinuosas da estrada que levava a macieira condenada pela maldição da culpa. Ao tempo em que as bocas se colavam, mãos ágeis percorriam as curvas perigosas, um do corpo do outro, como se o destino dependesse daquele beijo para selar a sina dos futuros amantes. Enquanto isso, na macieira frondosa, a mesma que daria origem também a mecânica fria dos homens sérios, os frutos se multiplicavam, abençoando a fluidez com que os corpos, metamorfoseados, misturavam-se até fundir-se em um só.
Desse dia para cá, passou-se a chamar mundo a nossa casa! Pois que Deus disse: haja humanidade! E o homem e a mulher; fizeram-se em gestos ternos e hostilidades!
Por: Autran Lima
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segunda-feira, 31 de agosto de 2015
O homem cuja orelha cresceu
Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.
Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.
Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono da orelha?"
Ignácio de Loyola Brandão
quarta-feira, 22 de julho de 2015
A sereníssima República (Conferência do cônego Vargas)
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que
reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão
com que acudisses ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe
aqui; mas não ignoro também, - e fora ingratidão ignorá-lo, - que um pouco de
simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá
possa eu corresponder a ambas. Minha descoberta não é recente; data do fim do
ano de 1876. Não a divulguei então, - e, a não ser o Globo, interessante diário
desta capital, não a divulgaria ainda agora, - por uma razão que achará fácil
entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de retoques
últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo noticiou
que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo
feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com
ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do padre
Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal
se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne
Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que
muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista
descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior.
Senhores, vou
assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes
que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia
negativamente, com vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a
organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao
trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu. Ouço um
riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os
preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis.
Amais o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula
nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não
zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga.
Todos esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma
formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas
plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores,
não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece,
trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de
respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde
Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de
admiração em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura
inconsciente do vosso criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria agora
esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou
constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho,
entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta subtileza
estudou a vida psíquica dos animais.
Citando
Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de
primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as
teorias gratuitas e errôneas do materialismo. Sim, senhores, descobri uma
espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos
novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha
maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão
colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos
movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção.
No dia
seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha
chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode
comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua,
senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura
sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas
onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o
fiz sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo
dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária. Vinte vezes
desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças para arremeter a um trabalho
que, hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem.
Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu arácnide, e a análise da
língua. O objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da
ciência brasileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos
a parte em que reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo
demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa atenção. Dentro de um mês tinha
comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinquenta e cinco; em março de 1877
contava quatrocentas e noventa.
Duas forças
serviram principalmente à empresa de as congregar: - o emprego da língua delas,
desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi.
A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer
que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício
desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um
livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus
pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também
foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por
música. Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo.
Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas
todos tinham contra si o existirem. Explico-me.
Uma forma vigente de governo ficava exposta a
comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma
nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo
alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de
Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia,
em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a
vantagem de um mecanismo complicado, - o que era meter à prova as aptidões
políticas da jovem sociedade. Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os
diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas,
iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os
nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando
os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas.
Este sistema
fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da
paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não
foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de
suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta
indígena. A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título
magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. Não
direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os
meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam
um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares.
Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e
melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que
posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham,
dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais à duração de um Estado.
Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope,
segundo vou mostrar-vos. Com efeito, desde que compreenderam que no ato
eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior
atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco
polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida
e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título
de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima,
podeis crê- lo.
O processo
eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem
certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado "das
inscrições". No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas
pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era
um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos
os cargos. A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo
depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no
saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembleia verificou a
exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de
largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia- se
o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição
seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se
por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava
de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era
impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas
distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a
distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do
saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as
três polegadas. Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três
cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth
e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo.
Devo
explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a
geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as
teias com fios retos, é o partido retilíneo; - outros pensam, ao contrário, que
as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, - é o partido curvilíneo. Há ainda
um terceiro partido, misto e central, com este postulado: - as teias devem ser
urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente,
uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa
de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar,
obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a
geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma
simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a
probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins
ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são
perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a
da virtude e do saber, porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao
contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas,
duramente retas.
O terceiro
partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e
outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a
exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo. Nem
Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas
foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do
segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um
argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com
espanto geral da república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre
os louros do vencedor; requereram uma devassa.
A devassa
mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de
seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo
que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário.
Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de
retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o
saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem
ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim
teriam tempo de corrigir as inscrições. Infelizmente, senhores, o comentário da
lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à astúcia de um
certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar
na assembleia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas
com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando
a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a ideia das malhas.
A assembleia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime
anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja
inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome
inscrito o próprio nome do candidato. Este novo estatuto deu lugar a um caso
novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas,
funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas
voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo
Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe
faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o
eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando
o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de
Nebraska, mas o dele.
O juiz de paz
deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, - talvez o primeiro da
república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, - o qual provou a
coisa nestes termos: - Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é
fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele
inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da
brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço?
Também não; vede: há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é
intencional, e a intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do leitor
para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um
efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois
modos, a forma gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome
escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro,
esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o
nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. - Cané. -
Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do
nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a
demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da
significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases,
modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas,
simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova,
evidente, clara, da minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas
Cane, dando este nome Caneca.
A lei
emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e
interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo
de meia polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não
evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às
dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis
que esta forma trazia consigo, uma conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo.
Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma
ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então
adotou-se a forma de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas
tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino, não inteiramente,
decerto, pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida e nos termos do
conselho de um dos mais circunspectos cidadãos da minha república, Erasmus,
cujo último discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado de
notificar a última resolução legislativa às dez damas incumbidas de urdir o
saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia
a famosa teia, à espera do esposo Ulisses. - Vós sois a Penélope da nossa
república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e
talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses,
cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é
a Sapiência.
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terça-feira, 21 de julho de 2015
Lima Barreto: Sua Excelência
O conto Sua Excelência nos chama a atenção para o fato irrefutável de
que, como o que diferencia uma pessoa de outra são sempre as posições sociais, pois
os indivíduos são iguais em essência e, em qualquer sociedade o mesmo ser
humano pode ser ministro ou cocheiro, pode ter “espetaculosos desejos” ou
“doridos queixumes”.
Portanto, “Temos que ler Lima Barreto porque não somos um país livre, somos
um país socialmente injusto, somos um país onde os pobres continuam pobres e as
elites continuam no lugar delas. Então, não é para aprender português que
se lê Lima Barreto; lê-se Lima Barreto para aprender a ser brasileiro.”
Dr. Antonio Arnoni Prado
O Ministro
saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera
a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando
bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos
circunstantes. Por isso entrara no cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar
se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos:
orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era
um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas
qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a
deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da
convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios.
Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos
ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido
até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que ele, ele só e unicamente, seria
capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham...
E ele sorriu,
quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de
imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de
ainda agora.
"Na vida
das sociedades, como na dos indivíduos..."
Que maravilha
Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho?
Recordou-se dele por inteiro:
"Aristóteles,
Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e
Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se
basear nos costumes..."
O olhar,
muito brilhante, cheio de admiração - o olhar do líder da oposição - foi o mais
seguro penhor do efeito da frase...
E quando
terminou! Oh!
"Senhor,
o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!"
A cerimônia
mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.
O auditório
delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe
que recebia as palmas da Terra toda.
O carro
continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo;
depois sumiram-se.
O veículo
agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que
seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde
eles pousassem.
Consultou o
relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída
da festa.
- Cocheiro,
onde vamos?
Quis arriar
as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os
esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:
- Onde vamos?
Miserável, onde me levas?
Apesar de ter
o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja.
Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas.
Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da
China, o língam da Índia estavam ali, entre todas as outras intactas.
- Cocheiro,
onde me levas?
Não era o
mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com
uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.
- Canalha,
pára, pára, senão caro me pagarás!
O carro voava
e o ministro continuava a vociferar:
- Miserável!
Traidor! Pára! Pára!
Em uma dessas
vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo
quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de
um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.
O calor
aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor,
despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças.
Sufocado,
estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus
braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e,
ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca
cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde
saíra triunfalmente, não havia minutos.
Nas
proximidades um cupê estacionava.
Quis
verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.
Pelas escadas
de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os
degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas
grã-cruzes.
Logo que o
personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como
se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:
- Vossa Excelência
quer o carro?
sábado, 18 de julho de 2015
Três poemas de Alexandre O'Neill
Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões (Lisboa, 19/12/1924
- Lisboa, 21/08/1986) foi um importante poeta do movimento surrealista português.
Era descendente de irlandeses. Tem uma biblioteca com o seu nome em Constância.
Autodidata, O'Neill foi um dos fundadores do Movimento
Surrealista de Lisboa. É nesta corrente que publica a sua primeira obra, o
volume de colagens A Ampola Miraculosa, mas o grupo rapidamente se
desdobra e acaba. As influências surrealistas permanecem visíveis nas obras
dele, que além dos livros de poesia incluem prosa, discos de poesia, traduções
e antologias. Não conseguindo viver apenas da sua arte, o autor alargou a sua ação
à publicidade. É da sua autoria o lema publicitário “Há mar e mar, há ir e
voltar”. Foi várias vezes preso pela polícia política, a PIDE.
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!
"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!
Há Palavras que Nos Beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
O Beijo
Congresso de gaivotas
neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
sexta-feira, 17 de julho de 2015
O Poema Pouco Original do Medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado'
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado'
sexta-feira, 5 de junho de 2015
Presságio
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente…
Cala: parece esquecer…
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…
quinta-feira, 4 de junho de 2015
Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas
tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou
lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.
quarta-feira, 27 de maio de 2015
Outras lembranças
Talvez nem lembre teu nome.
Posso, quem sabe, nos devaneios que ora a distância impõe,
Ante a destemperança de antonomásias,
Ter perfilhado qualquer perífrase que pudesse lhe atribuir
um codinome.
E essa, reconheço, seria, sem dúvida, a incapacidade que
acalento.
Contudo, lembro o quanto eras bela.
Lembro-me do desatino que teu sorriso provoca
E ainda me sinto mirar pelos teus olhos irradiando desejos
E lembro, sem cessar, que em pouquíssimas mulheres
Havia um anseio tão grandioso pela liberdade.
Disso eu me lembro.
Aliás, porque seria preciso lembrar-se de alguma coisa mais,
Se na velocidade dos acontecimentos, eu fui atraído para a
tua direção?
Do Livro A Vela Na Demasia de Vento.
Adão Lima de Souza
quarta-feira, 29 de abril de 2015
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem
tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles,
tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às crianças de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda gente que conheço e
que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipes – na vida…
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de
alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há nesse largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há nesse largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de
semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil
e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não
os terem amado,
Podem ter sidos traídos – mas ridículos nunca!
Podem ter sidos traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa
terça-feira, 28 de abril de 2015
COMUMENTE É ASSIM
Cada um ao nascer
traz sua dose de amor,
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
Sobre o coração levamos o corpo,
sobre o corpo a camisa,
mas isto é pouco.
Alguém
imbecilmente
inventou os punhos
e sobre os peitos
fez correr o amido de engomar. Quando velhos se arrependem.
A mulher se pinta.
O homem faz ginástica
pelo sistema Muller.
Mas é tarde.
A pele enche-se de rugas.
O amor floresce,
floresce,
e depois desfolha.
traz sua dose de amor,
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
Sobre o coração levamos o corpo,
sobre o corpo a camisa,
mas isto é pouco.
Alguém
imbecilmente
inventou os punhos
e sobre os peitos
fez correr o amido de engomar. Quando velhos se arrependem.
A mulher se pinta.
O homem faz ginástica
pelo sistema Muller.
Mas é tarde.
A pele enche-se de rugas.
O amor floresce,
floresce,
e depois desfolha.
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder
quinta-feira, 26 de março de 2015
Sintonia para pressa e presságio
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.
quarta-feira, 25 de março de 2015
Literatura: uma folha em branco.
A literatura, que tanto nos encanta com suas páginas
preenchidas por letras, é, antes de tudo, uma folha em branco. Os rabiscos
traçados, em 180 laudas, parecem-nos poucos para uma leitura de domingo.
Conquanto, o exercício da escrita se dá pelo cultivo do deserto como um pomar à
avessas - emprestando, à estrofe "Cabraliana", uma interpretação
própria. Acaso não fora o escultor quem nos dissera que a escultura está no
objeto primitivo, e que lhe cumpre somente retirá-la do seu cerne?
Gabriel García Márquez, e tantos outros, já falaram da
angústia frente à folha esbranquiçada. É, contudo, no vazio que a literatura
vivifica-se. É no pomar às avessas que, mesmo latente os frutos, entrevê-se
maravilhosas maçãs a espera de mãos prontas para colhê-las da fonte.
Então,
nada mais destila;
evapora;
onde foi maçã
resta
uma fome;
Onde
foi palavra
(potros
ou touros contidos)
resta
a severa forma do vazio.
Cultivar, pois, o deserto como um pomar às avessas é
prenunciar - e aguardar - a frutificação do estéril. Restará uma fome; sim, uma
boca vazia. Para saciá-la, eis que uma maçã. O sumiço da palavra. O surgimento
do vazio. Então, do nada, a palavra; o retorno de letras que se aglutinam. A
criação advinda do vazio - que agora preenche o papel de conjecturas e de dores
próprias e improváveis.
Breno S. Amorim
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
Mais náufragos que navegantes
Oh! Águas abissais!
Que exílio refugia-se em tuas profundezas?
Abrigai, por acaso, os ermos navegantes ou os náufragos da
rotina?
Vós desvelareis algum dia vosso latíbulo?
Vós desvelareis algum dia vosso latíbulo?
Porque, agora, para além-mar, desejos inconfessos seguem à
deriva,
Afugentando do caís os exploradores de mistérios
Que seguiram para o infinito onde rumam teus afluxos.
Adão Lima de Souza
Do Livro A Vela na Demasia de Vento
A poesia
Estranha arte, a poesia!
Desenho do indizível
Numa combinação fonética!
Arquitetura onírica,
Perfeita, patética
De um mundo só e intraduzível
Senão pela palavra tempo.
Adão Lima de Souza
Do Livro A Vela na Demasia de Vento
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015
NIETZSCHE: Fábula sobre verdade e mentira.
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama
em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes
inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da
"história universal": mas também foi somente um minuto.
Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e
os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim poderia alguém inventar uma
fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lastimável, quão fantasmagórico
e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da
natureza.
Houve eternidades em que ele não estava; quando de novo ele
tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma
missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano,
e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do
mundo girassem nele.
Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos
então que também ela flutua pelo ar com esse pathos e sente em
si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na
natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse
logo como um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador,
mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os
olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
BAKUNIN
“Se eu mereci a condenação à morte? De acordo com as
leis, pelo que eu pude compreender da explicação de meu advogado, sim. Segundo
a minha consciência, não. As leis estão raramente de acordo com a história e
permanecem quase sempre atrás dela. Eis porque há agitações sobre a terra e
sempre haverá. Eu agi segundo minha melhor convicção e nada busquei para mim
mesmo. Fracassei como tantos outros, e alguns melhores, antes de mim, mas o que
quis não pode perecer, não porque eu o quis, mas porque aquilo que eu quis é
necessário, inevitável. Cedo ou tarde, com maior ou menor sacrifício, isso
virá, no sentido de seu direito, de sua realização. Este é o meu consolo, minha
força e minha fé.”
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
Invocação do Recife
Recife do rio Capiberibe!
Ou Capibaribe como evocou o poeta!
Suas ruas infestadas de comércio e gente
Por onde outrora divagavam os poetas
E os seus heróis sangravam por ti,
Hoje, impera o desamparo
E seus filhos, combalidos
Se precipitam para o mar
A procura de abrigo e acalanto
Já não sonham mais... Apenas persistem!
Recife do rio Capibaribe!
Ou Capiberibe como evocou o poeta!
Suas calçadas repletas de miséria e dor,
Outrora, ilustres libertadores caminhavam
Enquanto prenunciavam um mundo melhor
Hoje, inerte, assiste o sucumbir dos seus heróis
E seus filhos, vencidos
Se precipitam para o esquecimento
Alijados do cuidado e da afeição.
Já não amam mais... Apenas esperam!
Recife do rio Capiberibe!
Ou Capibaribe como evocou o poeta!
À tua margem, o poeta engenheiro
Espreita as imponentes construções
À procura, nas modernas casas-grandes,
Do olhar trancafiado dos senhores livres
Que ensurdeceram para os gritos vindos da senzala
Que se ergue medonha
Em tuas ruas de nomes esperançosos!
E contra, teus filhos, desiludidos,
Se precipita a noite
A lhes devorar o sonho e o temor!
Já não ousam... Apenas aceitam!
Recife do rio Capibaribe
Ou Capiberibe como evocou o poeta!
Suas ruas agora são mangues
Onde há fome e falta identidade!
E homens-caranguejos
De membros debilitados
Escavam a lama de concreto e asfalto!
À procura de saída e acolhimento!
E contra seus filhos, Anjos caídos,
Se precipita a mentira
A corroer o que restou de probabilidades!
Já não são... Apenas
estão!
Recife do rio Capiberibe!
Ou Capibaribe! Que importa?!
Se não fora ouvida a evocação do poeta
E suas ruas desmereceram seus nomes -
De esperança, de união, da aurora –
Pois, deixastes que os escravagistas modernos
Desonrassem o sangue de teus heróis
Erguestes a bandeira da miséria
Tão impregnada de eternidade!
E seus filhos, derrotados
Foram impedidos de vingar tua aurora!
Já não beligeram mais... Apenas imploram!
Recife do rio Capibaribe! Ou Capiberibe!
Recife do rio dos infortúnios! Isto sim!
Como deveriam evocar os poetas!
Suas ruas traduzem o desamparo
E contra teus filhos, heróis anônimos!
Se precipitam os arrecifes,
Despejando-os na mendicância dos sonhos!
Não os deixastes ir embora pra Pasárgada
Porque não eram amigos do rei!
Recife do rio Capiberibe! Ou Capibaribe!
Como o evocaria hoje o poeta?
Adão Lima de Souza
Do Livro A Vela na Demasia de Vento
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