quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Dois poemas anarquistas!

Avante!

Vós que tendes a vida torturada
Pelo jugo mordaz da burguesia;
Vós que horrores sofreis dia por dia
Dessa turba cruel, envenenada;

Vós que a razão sentis amordaçada
Pelo grito brutal da Tirania,
Tempo é já de abater a covardia
E da turba abafar a gargalhada!...

Levantai-vos do charco apodrecido!
Sejai firmes na Grande Trajetória,
Reivindicai o tempo já perdido!...

Avante, ó paladinos do Crisol,
Que além desvendará nossa vitória,
Através da brancura d'outro Sol!...

Antonio Rocha, 01/09/1914


O Amor

Aí tendes o Amor do século pujante,
A portentosa lei que há-de reger o mundo,
Quando o sol, que hoje rompe apenas no levante,
Atingir do zenite o páramo fecundo.

É forçoso que após a morte desastrosa
Das divindades vãs, fantásticas de outrora
Se eleve, como um astro, a crença luminosa
De uma igreja maior, mais forte e duradoura.

Seja pois o universo a Grande Igreja
Onde o novo ritual em pompas de Thabor
Se célebre, e cada um o sacerdote seja,
E cada peito o altar da religião do Amor.

Augusto de Lima, 26/06/2014

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Ferreira Gullar: Poema obsceno


Façam a festa 
cantem e dancem 
que eu faço o poema duro 
o poema-murro 
sujo como a miséria brasileira 

Não se detenham: 
façam a festa 
Bethânia Martinho 
Clementina Estação Primeira de Mangueira Salgueiro 
gente de Vila Isabel e Madureira 
todos 
façam 
a nossa festa 
enquanto eu soco este pilão 
este surdo 
poema 
que não toca no rádio 
que o povo não cantará 
(mas que nasce dele) 
Não se prestará a análises estruturalistas 
Não entrará nas antologias oficiais 
Obsceno 
como o salário de um trabalhador aposentado 
o poema 
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país 
- e espreitam.  



segunda-feira, 8 de agosto de 2016

João Cabral de Melo Neto: Serventia das ideias fixas


Quando aquele que os sofre
Trabalha com palavras,
são úteis o relógio, a bala e,
mais, a faca.

Os homens que em geral lidam
nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó,
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal

Pois somente essa faca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas

terça-feira, 5 de julho de 2016

Luigi Pirandello


Felizes as marionetes’, suspirei, ‘sobre cujas cabeças de madeira o falso céu se conserva sem buracos! Nenhuma perplexidade angustiosa, nem prudência, nem empecilho, nem sombra, nem piedade: nada! Podem atuar bravamente e vivenciar com gosto sua comédia, e amar, e ter consideração e respeito por si mesmas sem nunca sofrer de vertigens ou tonturas, pois para seus tamanhos e atitudes aquele céu é um teto sob medida”.  (O Falecido Mattia Pascal)

O aspecto trágico da vida está justamente nessa lei a que o homem é forçado a obedecer, a lei que o obriga  a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo necessário. E é essa escolha que organiza a nossa harmonia individual, o sentimento de nosso equilíbrio moral. É ela que constitui a tragédia e que faz com que os meus dramas não sejam simples farsas. Eles apresentam um lei de sacrifício: o sacrifício da multidão de vidas que poderíamos viver e que, no entanto, não vivemos.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

FRANZ KAFKA: Diante da Lei

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar - lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. -“É possível” – diz o guarda. -“Mas não agora!”. O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. -“Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.

O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: -“Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste”.

Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guada durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima.

Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. -“Que queres tu saber ainda?”, pergunta o guarda. -“És insaciável”.

-“Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. -“Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -“Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.


Franz Kafka, parte da parte final do livro “O Processo”

terça-feira, 31 de maio de 2016

Por que nós somos anarquistas?

Nós somos anarquistas, porque há vários séculos, temos sido vítimas de todos os tipos de governos, que ao longo dessa tirania, foi aparecendo mais um ladrão, mais um fanático, mais um assassino mais um déspota.
Nós somos anarquistas porque nós achamos que não existem razões para ser explorado e para que tenhamos de trabalhar para que um grupo de sem vergonhas se tornem milionários.
Nós somos anarquistas, porque não aceitamos nas leis que são inventadas para assassinar e sufocar o nosso grito de protesto. Nós somos anarquistas porque não acreditamos nas suas guerras, em suas pátrias, ou em seus deuses. Nós somos anarquistas porque detestamos sua polícia, os seus generais, reis e presidentes.
Nós somos anarquistas, porque, ao contrário deles, sofremos com as desgraças humanas. Nós somos anarquistas, porque queremos vida livre, saudável, de respeito mútuo e igualdade para os nossos filhos e filhas.
Nós somos anarquistas porque não aguentamos ver as lágrimas de tantas pessoas boas, humildes, que têm sido enganadas geração após geração. Nós somos anarquistas, porque estamos envergonhados desse sistema, em que vemos, não só morte, mas: fome, prisões, repressão, desigualdade, e alienação além de milhões de mentiras.
Nós somos anarquistas porque conhecemos o seu poder, a sua força, seu terrorismo, a calúnia, vocês nos assassinam nos encarceram, nos difamam.
Chamamos de terroristas, algumas pessoas que dominam outras pessoas com bombas, tanques, armas, prisões, torturas e execuções, hospitais psiquiátricos e a mentira do inferno. Dizem que Anarquia é o caos, mas na sua sociedade capitalista é que vemos criminalidade, prostituição, desigualdade, destruição, ao mesmo tempo: excesso de comida e milhões de seres humanos morrendo de fome, bombardeios de povoados, cidades, países inteiros, arrasam tudo com sua ganância causando pânico geral.
Sua ambição, seu egoísmo, sua burrice, Sua cegueira e loucura pelo poder está destruindo a você mesmo, os seu filhos e seus netos não vão querer lembrar de você, seu sistema está em caos porque é sustentado por mentiras, terror, artigos, Códigos, leis, recompensas e punições.
É por isso que somos anarquistas, somos anarquistas para mudar esta sociedade positivamente, para que você se cure dessa loucura perigosa, Nós somos anarquistas, porque é necessário que haja alguém para gritar suas atrocidades, porque não temos medo, como muitos não tiveram.
Nós somos anarquistas nas ruas, na prisão, na cadeira elétrica, no julgamento e nos cemitérios.
Porque ser um anarquista é ser muitas coisas que você nem compreende nem tem capacidade de entender, e assim, nos assassinam desde séculos atrás, nos põem a culpa e nos aprisionam, alienam soldados e policias para que vos defendam, usam de todas as artimanhas para nos derrubar, mas, chegam a conclusão de que, para cada anarquista que vocês assassinam, nasce outro.
Não iremos lhes perdoar, não jogaremos o seu jogo, somos aqueles que não creem em suas promessas, dói em vocês quando defendemos a liberdade e a igualdade, acreditamos na arte, no progresso, na educação, não precisamos nem de deuses, nem mestres, acreditamos nos seres humanos, na Natureza, nos direitos e deveres de cada um, queremos uma sociedade de paz, amor e respeito mútuo, uma sociedade que não parece ser nada igual a sua, queremos uma sociedade anarquista.


quarta-feira, 20 de abril de 2016

KARL MARX: O TRABALHO ALIENADO

Consideramos até aqui a alienação, a espoliação do operário, só sob um aspecto, o de sua relação com os produtos de seu trabalho. Ora, a alienação não aparece somente no resultado, mas também no ato da produção, no interior da própria atividade produtora. Como o operário não seria estranho ao produto de sua atividade se, no próprio ato de produção, não se tornasse estranho a si mesmo? 

Com efeito, o produto é só o resumo da atividade de produção. Se o produto do trabalho é espoliação, a própria produção deve ser espoliação em ato, espoliação da atividade, atividade que espolia. A alienação do objeto do trabalho é só o resumo da alienação, da espoliação, na própria atividade do trabalho.

Ora em que consiste a espoliação do trabalho? Primeiro, no fato de que o trabalho é exterior ao operário, isto é, que não pertence ao seu ser; que, no seu trabalho, o operário não se afirma, mas se nega; que ele não se sente satisfeito aí, mas infeliz; que ele não desdobra aí uma livre energia física e intelectual, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito. É por isso que o operário não tem o sentimento de estar em si senão fora do trabalho; no trabalho, sente-se exterior a si mesmo.

É ele quando não trabalha em, quando trabalha, não é ele. Seu trabalho não é voluntário, mas imposto. Trabalho forçado, não é a satisfação de uma necessidade, mas somente um meio de satisfazer necessidades fora do trabalho. A natureza alienada do trabalho aparece nitidamente no fato de que, desde que não exista imposição física ou outra, foge-se do trabalho como da peste.

O trabalho alienado, o trabalho no qual o homem se espolia, é sacrifício de si, mortificação. Enfim, o operário ressente a natureza exterior do trabalho pelo fato de que não é seu bem próprio, mas o de outro, que não lhe pertence; que no trabalho o operário não pertence a si mesmo, mas a outro. 

Na religião, a atividade própria da imaginação, do cérebro, do coração humano, opera no indivíduo independentemente dele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica. Do mesmo modo, a atividade do operário não é sua atividade própria; pertence a outro, é perda de si.

Chega-se então a esse resultado, que o homem (o operário) só tem espontaneidade nas suas funções animais: o comer, o beber e a procriação, talvez ainda na habitação, o adorno etc.; e que nas suas funções humanas, só sente a animalidade: o que é animal torna-se humano e o que é humano torna-se animal. 

Sem dúvida, comer, beber, procriar, etc., são também funções autenticamente humanas. Contudo, separadas do conjunto das atividades humanas, erigidas em fins últimos e exclusivos, não são mais que funções animais.


MARX, Ébauche d’une critique de l’economie politique .Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, toomo II pp. 60-61. (esboço de uma critica da economia política), Citado em: VV.AA. Os filósofos através dos textos. De Platão a Sartre. [tradução Constança Terezinha M. César] São Paulo: Paulus, 1997. p.250-251.

terça-feira, 19 de abril de 2016

KARL MARX: A IDEOLOGIA ALEMÃ

Eis, pois os fatos: indivíduos determinados que têm uma atividade produtiva segundo um modo determinado entram nas relações sociais e políticas determinadas. É preciso que em cada caso isolado a observação empírica mostre nos fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, o laço entre a estrutura social e política e a produção. 

A estrutura social e o estado resultam constantemente do processo vital de indivíduos determinados; mas desses indivíduos, não tais como podem aparecer na sua própria representação ou na de outro, mas tais como são na realidade, isto é, tais como operam e produzem materialmente; logo, tais como agem nas bases e nas condições e limites materiais determinados e independentes de sua vontade.

A produção das ideias, das representações e da consciência está primeiro direta e intimamente misturada à atividade material e ao comércio natural dos homens; ela é linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aí ainda como a emanação direta de seu comportamento material. Dá-se o mesmo quanto à produção intelectual tal qual se apresenta na língua da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc., de todo um povo. 

São os homens que são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças positivas e das relações que lhes correspondem, inclusive as formas mais amplas que estes podem assumir. 

A consciência não pode nunca ser outra coisa senão o ser consciente e o ser dos homens é seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações nos parecem postos de cabeça para baixo como numa câmera escura, este fenômeno decorre de seu processo de vida histórica, absolutamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente física.

Ao contrário da filosofia alemã que desce do céu à terra, é da terra ao céu que se sobe aqui. Dito de outro modo, não partimos do que os homens dizem, imaginam, representam, nem sequer do que são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação de outro, para chegar em seguida aos homens em carne e osso; não, partimos dos homens em sua atividade real; é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos desse processo vital.

E mesmo as fantasmagorias no cérebro humano são sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida material que se pode constatar empiricamente e que repousa em bases materiais.

Em consequência desse fato, a moral, a religião, a metafísica e todo o resto da ideologia, assim como as formas de consciência que lhe correspondem, perdem logo toda aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; são, ao contrário, os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, seus pensamentos e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.

No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como sendo indivíduo vivo; no segundo modo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais e vivos e se considera a consciência unicamente como sua consciência.


MARX, L’ideologie allemande, ( a ideologia alemã), 1ª parte. Editions sociales, pp. 34-47 Citado em: VV.AA. Os filósofos através dos textos. De Platão a Sartre. [tradução Constança Terezinha M. César] São Paulo: Paulus, 1997. p.253-254.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Não há Vagas



O preço do feijão 
não cabe no poema. O preço 
do arroz 
não cabe no poema. 
Não cabem no poema o gás 
a luz o telefone 
a sonegação 
do leite 
da carne 
do açúcar 
do pão 

O funcionário público 
não cabe no poema 
com seu salário de fome 
sua vida fechada 
em arquivos. 
Como não cabe no poema 
o operário 
que esmerila seu dia de aço 
e carvão 
nas oficinas escuras 

- porque o poema, senhores, 
   está fechado: 
   "não há vagas" 

Só cabe no poema 
o homem sem estômago 
a mulher de nuvens 
a fruta sem preço 

O poema, senhores, 
    não fede 
    nem cheira 
Ferreira Gullar, in 'Antologia Poética' 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Clarice Lispector: Das Vantagens de Ser Bobo

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." 

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia. 

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. 

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. 

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?" 

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama! 

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz. 

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem. 

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! 

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

"Sou composta por urgências: 
minhas alegrias são intensas; 
minhas tristezas, absolutas. 
Entupo-me de ausências,
Esvazio-me de excessos. 
Eu não caibo no estreito, 
eu só vivo nos extremos.

Pouco não me serve, 
médio não me satisfaz,
metades nunca foram meu forte! 

Todos os grandes e pequenos momentos,
feitos com amor e com carinho,
são pra mim recordações eternas.
Palavras até me conquistam temporariamente...
Mas atitudes me perdem ou me ganham para sempre.

Suponho que me entender 
não é uma questão de inteligência 
e sim de sentir, 
de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca".

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

HENRY MILLER


(...) Sinto o mundo inteiro embaixo de mim, um mundo vacilante e desmoronante, um mundo gasto e polido como o crânio de leproso. Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não lhe restaria um palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem assim aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais, humanidade supurada demais para que o homem possa florescer.

A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme e trêmulo. Se com intervalos de séculos aparece um homem de olhar desesperado e faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um flagelo.

Se de vez em quando encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e queimam, arrancam gemidos, lágrimas e pragas, sabemos que elas provêm de um homem com as costas na parede, um homem cuja única defesa restante são suas palavras, e suas palavras são sempre mais fortes que o peso mentiroso e esmagador  do mundo, mais fortes que todos os ecúleos e rodas que os covardes inventam para esmagar o milagre da personalidade.


Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há em seu coração, expressar o que é realmente sua experiência, o que é realmente sua verdade, penso que o mundo se despedaçaria, que se reduziria a pedacinhos e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do mundo. (Trópico de Câncer)      

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Apontamentos Filosóficos: Sartre contra Freud


Sartre rejeita enfaticamente a ideia de causas inconscientes dos fatos psíquicos; para ele tudo que está na mente é consciente. Rompeu com a psicanálise por esta retirar a responsabilidade do indivíduo ao invocar a ação de uma força subconsciente e estados mentais inconscientes, que, para Sartre, não existem. 

Sustenta que a consciência é necessariamente transparente para si mesma. Todos os aspectos de nossas vidas mentais são intencionais, escolhidos, e de nossa responsabilidade, o que é incompatível com o total determinismo psíquico postulado por Freud.

Teríamos de atribuir a repressão inconsciente a alguma instância dentro da mente (a "censura") que distingue entre o que será reprimido e o que pode ficar consciente, de forma que essa censura tem de estar a par da ideia reprimida a fim de não estar a par dela. Portanto, o inconsciente não é verdadeiramente inconsciente. 

Em algum nível eu estou consciente, e escolho, o que vou e o que não vou permitir vir claramente à minha consciência. Por isso não posso usar "o inconsciente" como uma desculpa para meu comportamento. Mesmo que eu não possa admitir para mim mesmo, eu estou consciente e escolhendo. Mesmo na decepção que sofro, eu sei que sou eu aquele que me decepciona, e o assim chamado "Censor" de Freud deve estar consciente para saber o que reprimir.

Aqueles que usam o inconsciente como desculpa do comportamento acreditam que nossos instintos, nossas inclinações e nossos complexos constituem uma realidade que simplesmente é; que não é verdadeira nem falsa em si mesma mas simplesmente real.

Somos responsáveis por nossas emoções, visto que há maneiras que escolhemos para reagir frente ao mundo. Somos também responsáveis pelos traços duradouros da nossa própria personalidade. Não podemos dizer "sou tímido", como se isto fosse um fato imutável, uma vez que nossa timidez representa a forma como agimos, e que podemos escolher agir diferentemente.

Nossos atos nos definem. Na vida, o homem se compromete, desenha seu próprio retrato e não há mais nada senão esse retrato. Nossas ilusões e imaginação a nosso respeito, sobre o que poderíamos ter sido, são decepções auto-infligidas. Permanentemente estamos a nos fazer do modo que somos. Uma pessoa "corajosa" é simplesmente alguém que geralmente age com bravura. Cada ato contribui para nos definir como somos, e em qualquer momento podemos começar a agir de modo diferente e desenhar um retrato diferente de nós mesmos. Há sempre uma possibilidade de mudança, de começar a fazer um tipo diferente de escolha. Temos o poder de nos transformar indefinidamente..

O instrumento proposto por Sartre para que possamos conseguir um auto-conhecimento genuíno é a Análise existencial. Ele chama "Psicanálise Existencial" a "Uma psicanálise que busca não as causas do comportamento de uma pessoa, mas o seu sentido" (O que o comportamento exprime como escolha).A função desta psicanálise não é procurar as causas do comportamento de uma pessoa, mas o seu sentido A realidade humana identifica-se e se define pelos fins que busca e não por pretensas "causas" no passado.

Nenhuma "essência" determinada de mim mesmo orienta a priori meu comportamento. Porém, há o que Sartre chama "Projeto Original". Como uma pessoa é essencialmente uma unidade, e não apenas um amontoado de desejos ou hábitos sem relação, deve haver para cada uma delas uma escolha fundamental por um papel ou script de vida, o "projeto original", o qual dá o significado de qualquer aspecto específico de seu comportamento.

A radical oposição de Sartre à psicanálise influiu grandemente na psiquiatria de seu tempo. Ronald David Laing (1927-1989), um conhecido psiquiatra inglês de origem escocesa, que buscou um novo método de tratamento da loucura seguindo a filosofia existencialista. Entre suas principais obras está Reason & Violence: A Decade of Sartre's Philosophy ("Razão e violência: uma década da filosofia de Sartre"), em co-autoria com D.G. Cooper, de 1971.


Por: Rubem Queiroz Cobra

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Guimarães Rosa: A Terceira Margem do Rio

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.


Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.


No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.


Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.



Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", cuja compra e leitura recomendamos.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Apontamentos Filosóficos: O existencialismo é um humanismo

O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens. 

Dostoiévsky escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Aí se situa o ponto de partida do existencialismo.
Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue.

Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer. (...)

O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de orientar; Porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa portanto que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: "O homem é o futuro do homem".
É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa. Mas em tal caso o homem está desamparado.

O quietismo é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo eu não posso fazer. A doutrina que vos apresento é justamente a oposta ao quietismo visto que ela declara: só há realidade na ação; e vai aliás mais longe, visto que acrescenta: o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se é portanto nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.

De acordo com isto podemos compreender por que a nossa doutrina causa horror a um certo número de pessoas. Porque muitas vezes não têm senão uma única de suportar a sua miséria, isto é, pensar "as circunstâncias foram contra mim, eu muito mais do que aquilo que fui; é certo que não tive um grande amor, ou uma grande amizade, mas foi porque não encontrei um homem ou uma mulher que fossem dignos disso, não escrevi livros muito bons, mas foi porque não tive tempo livre para o fazer; não tive filhos a quem me dedicasse, mas foi porque não encontrei o homem com quem pudesse realizar a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim e inteiramente viáveis, inúmeras disposições, inclinações, possibilidades que me dão um valor que da simples série dos meus atos se não pode deduzir".

Ora, na realidade, para o existencialista não há amor diferente daquele que se constrói; não há possibilidade de amor senão a que se manifesta no amor, não há gênio senão o que se exprime nas obras de arte; o gênio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de Racine é a série das suas tragédias, e fora disso não há nada; por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma nova tragédia, já que precisamente ele a não escreveu? Um homem embrenha-se na sua vida, desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada.

Que significa aqui o fato de a existência preceder a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define.
O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza, visto que não há Deus para a conceber.

O homem é, não só como ele se concebe, mas como ele quer ser; como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência, o homem não é mais do que o que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.
É também a isto que chamamos subjetividade e pelo que somos censurados sob o mesmo nome. Mas que queremos dizer com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Pois o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais nada, se lança para um futuro, e que é consciente de se projetar no futuro.
O homem é, antes de mais nada, um projeto vivido subjetivamente, ao invés de ser um creme, qualquer coisa podre, ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de tudo o que ele houver projetado ser. Não o que ele quiser ser. Pois o que vulgarmente entendemos por querer é uma decisão consciente que, para a maior parte de nós, é posterior ao que alguém fez de si mesmo. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea daquilo que se chama vontade.

Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a responsabilidade total por sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. Há dois sentidos para a palavra subjetivismo, e é com isso que jogam nossos adversários. Subjetivismo quer dizer, de um lado, escolha do sujeito individual por si próprio; e, por outro, impossibilidade do homem em superar a subjetividade humana. O segundo é que é o sentido profundo do existencialismo.

Quando dizemos que o homem se escolhe, queremos dizer que cada um de nós se escolhe; mas, com isso, também queremos dizer que, ao se escolher, ele escolhe todos os homens.

Com efeito, não existe um ato nosso que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser.
Escolher ser isto ou aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, pois nunca podemos escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.

Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo em que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve a humanidade.

J.-P. Sartre (O existencialismo é um Humanismo)