Ah, ser
tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes
Dos
assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! (Ode Marítima)
A Ode Marítima é imenso poema de arquitetura muito firme,
mas muito complexo. Ele vai da solidão à solidão de modo que sua última palavra
não é “nós”. A crueldade coletiva, exibida na imagem dos piratas, é uma
passagem, certamente longa, quase uma ladainha, mas assim mesmo uma passagem,
uma espécie de devaneio alucinado.
Podem-se distinguir sete momentos no poema.
1 1. Solidão da proferição: em Lisboa, um “eu”
indeterminado, mas que se encandeia no
poema, olha, sob o sol do estuário do Tejo, o porto, o caís. Um guindaste gira
no céu.
2. Momento platônico. A solidão sai de si ao fazer advir uma ideia pura das coisas. Ela promove como essência de sua visão o “grande caís”., o caís essencial.
3. Esse momento é desfeito pela entrada em cena de um múltiplo absolutamente furioso. Esse múltiplo cria apelo coletivo na direção do “nós”, quebra a solidão.
Apresento um excerto dessa cesura;
Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda parte pr’onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente.
Cuspir dos lábios o sal dos mares
Que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar
Das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários
portos!
(...)
Ir convosco, despir de mim – ah! Põe-te
daqui
De ações,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, extática, regrada e
revista.
[...]
Por fim, a palavra fundamental de todo esse
ataque é “com”, significante da absorção do “eu” num “nós” nômade. (...) Álvaro
de Campos indica com lucidez a condição desse nomadismo coletivo: o despir da
familiaridade, da instalação. Existe aí notação profunda, e que julgo exata:
para que o indivíduo se torne sujeito, é preciso que supere o medo, o “medo
inato das cadeias”, certamente, mas mais ainda o medo de perder toda identidade, de ficar despossuído das
rotinas do lugar e do tempo, da vida “regrada e revista”.
4 4. Vêm, como efeito do apelo que precede, a
rebentação total do “eu” na multiplicidade-pirata, uma espécie de dilatação
extática do sujeito pessoal num “nós” absolutamente cruel. Daí meu segundo
extrato:
Ah! Os piratas! Os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis
E abomináveis, que rói como um cio abstrato
os nossos
Corpos franzinos,
os nossos nervos femininos e delicados,
e põe grandes febres loucas nos nossos
olhares
vazios!
(...)
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e
Nas sensualidades estiradas!
[...]
Essa passagem combina dois temas
aparentemente contraditórios, a transgressão (“ânsia do ilegal”, “acontecimento
de sangue” , “grandes febres”...) e a submissão ( “ a parte submissa”, os
nervos femininos e delicados”, os “olhares vazios” ...). tudo isso vai
ocasionar no poema a longa rapsódia masoquista, levada até a imaginação de um
corpo esquartejado, espalhado, real em pedaços das “sensualidades estiradas”.
(...) a passividade, com efeito, é
tão-somente a dissolução do “eu”, a renúncia a toda identidade subjetiva.
5 5. De repente, interrupção. Como se o impulso de
dissolução chegasse a um limite da imaginativa em matéria de crueldade e de
submissão. E na sequência o “nós” se desfaz, e há uma como que regressão melancólica na direção do “eu”.
6 6. Entretanto, outro tipo de multiplicidade dilata
ainda mais a força criadora do sujeito. Essa multiplicidade3 não é dinâmica,
extática e cruel, como a dos piratas. É comercial e racional, atarefada,
diligente. Álvaro de Campos dirá “burguesa”. Trata-se na verdade do momento
humanista do poema. É desse sexto tempo que provém minha citação seguinte:
As viagens, os viajantes – tantas espécies
deles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo!
Tanta profissão! Tanta gente!
Tanto destino diverso que se pode dar à
vida,
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a
mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são
curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar
muito
Para gente.
A fraternidade afinal não é uma ideia
revolucionária.
É uma coisa que a gente aprende pela vida
fora,
Onde tem tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que
tolerar,
E acaba quase a chorar de ternura
Sobre o que tolerou!
Ah! Tudo isto é belo, tudo isto é humano
E ainda ligado
Aos sentimentos humanos,
Tão conviventes e burgueses,
Tão complicadamente simples,
Tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos
educar
No humano.
Pobre gente! Pobre gente toda gente!
(...)
[...]
Quando o poeta declara que “a fraternidade afinal
não é uma ideia revolucionária”, ele nos incita a distinguir a fraternidade propriamente
dita , que é despir da vida legítima, abandono ao poder acontecimental do ‘nós’;
e fraternidade derivada e corrompida, que é apenas humanismo piedoso, cuja
fórmula é a tolerância com tudo, a aceitação das diferenças, os “sentimentos
humanos” sobre os quais é particularmente justo dizer que são “metafisicamente
tristes”, pois implicam renúncia a qualquer paixão pelo real.
7 7. Incapaz de incorporar-se ao humanismo, de dobrar
sua palavra à tolerância universal tratada como escolha e ternura, o poeta
retira-se para mais perto possível da figura inicial, a de uma solidão que
sonda , de muito alto sobre o porto, o movimento circular de um guindaste.
[...]
Álvaro de Campos, por fim, pensa que de
grande só há a partida, o impulso ilegal e multiforme que rompe a frouxidão
corrente. Mas no devotamento ao múltiplo – a passagem do “eu” ao “nós” – tudo se
deteriora em aceitação e em tolerância. De
modo que, pela mediação da submissão orgíaca e cruel, passamos no final de
contas de uma frouxidão primeira ( o medo, a vida pacífica, sentada) a uma
segunda frouxidão ( o humanismo religioso, burguês e tolerante), que em última
análise vê por toda a parte o homem e,
portanto, conclui que há apenas “a vida, afinal, no fundo sempre, sempre a
mesma”.
Trecho
tirado do livro o Século, de Alain Badiou.
Adaptado
por: Adão Lima de Souza.
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