quarta-feira, 20 de abril de 2016

KARL MARX: O TRABALHO ALIENADO

Consideramos até aqui a alienação, a espoliação do operário, só sob um aspecto, o de sua relação com os produtos de seu trabalho. Ora, a alienação não aparece somente no resultado, mas também no ato da produção, no interior da própria atividade produtora. Como o operário não seria estranho ao produto de sua atividade se, no próprio ato de produção, não se tornasse estranho a si mesmo? 

Com efeito, o produto é só o resumo da atividade de produção. Se o produto do trabalho é espoliação, a própria produção deve ser espoliação em ato, espoliação da atividade, atividade que espolia. A alienação do objeto do trabalho é só o resumo da alienação, da espoliação, na própria atividade do trabalho.

Ora em que consiste a espoliação do trabalho? Primeiro, no fato de que o trabalho é exterior ao operário, isto é, que não pertence ao seu ser; que, no seu trabalho, o operário não se afirma, mas se nega; que ele não se sente satisfeito aí, mas infeliz; que ele não desdobra aí uma livre energia física e intelectual, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito. É por isso que o operário não tem o sentimento de estar em si senão fora do trabalho; no trabalho, sente-se exterior a si mesmo.

É ele quando não trabalha em, quando trabalha, não é ele. Seu trabalho não é voluntário, mas imposto. Trabalho forçado, não é a satisfação de uma necessidade, mas somente um meio de satisfazer necessidades fora do trabalho. A natureza alienada do trabalho aparece nitidamente no fato de que, desde que não exista imposição física ou outra, foge-se do trabalho como da peste.

O trabalho alienado, o trabalho no qual o homem se espolia, é sacrifício de si, mortificação. Enfim, o operário ressente a natureza exterior do trabalho pelo fato de que não é seu bem próprio, mas o de outro, que não lhe pertence; que no trabalho o operário não pertence a si mesmo, mas a outro. 

Na religião, a atividade própria da imaginação, do cérebro, do coração humano, opera no indivíduo independentemente dele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica. Do mesmo modo, a atividade do operário não é sua atividade própria; pertence a outro, é perda de si.

Chega-se então a esse resultado, que o homem (o operário) só tem espontaneidade nas suas funções animais: o comer, o beber e a procriação, talvez ainda na habitação, o adorno etc.; e que nas suas funções humanas, só sente a animalidade: o que é animal torna-se humano e o que é humano torna-se animal. 

Sem dúvida, comer, beber, procriar, etc., são também funções autenticamente humanas. Contudo, separadas do conjunto das atividades humanas, erigidas em fins últimos e exclusivos, não são mais que funções animais.


MARX, Ébauche d’une critique de l’economie politique .Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, toomo II pp. 60-61. (esboço de uma critica da economia política), Citado em: VV.AA. Os filósofos através dos textos. De Platão a Sartre. [tradução Constança Terezinha M. César] São Paulo: Paulus, 1997. p.250-251.

terça-feira, 19 de abril de 2016

KARL MARX: A IDEOLOGIA ALEMÃ

Eis, pois os fatos: indivíduos determinados que têm uma atividade produtiva segundo um modo determinado entram nas relações sociais e políticas determinadas. É preciso que em cada caso isolado a observação empírica mostre nos fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, o laço entre a estrutura social e política e a produção. 

A estrutura social e o estado resultam constantemente do processo vital de indivíduos determinados; mas desses indivíduos, não tais como podem aparecer na sua própria representação ou na de outro, mas tais como são na realidade, isto é, tais como operam e produzem materialmente; logo, tais como agem nas bases e nas condições e limites materiais determinados e independentes de sua vontade.

A produção das ideias, das representações e da consciência está primeiro direta e intimamente misturada à atividade material e ao comércio natural dos homens; ela é linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aí ainda como a emanação direta de seu comportamento material. Dá-se o mesmo quanto à produção intelectual tal qual se apresenta na língua da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc., de todo um povo. 

São os homens que são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças positivas e das relações que lhes correspondem, inclusive as formas mais amplas que estes podem assumir. 

A consciência não pode nunca ser outra coisa senão o ser consciente e o ser dos homens é seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações nos parecem postos de cabeça para baixo como numa câmera escura, este fenômeno decorre de seu processo de vida histórica, absolutamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente física.

Ao contrário da filosofia alemã que desce do céu à terra, é da terra ao céu que se sobe aqui. Dito de outro modo, não partimos do que os homens dizem, imaginam, representam, nem sequer do que são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação de outro, para chegar em seguida aos homens em carne e osso; não, partimos dos homens em sua atividade real; é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideológicos desse processo vital.

E mesmo as fantasmagorias no cérebro humano são sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida material que se pode constatar empiricamente e que repousa em bases materiais.

Em consequência desse fato, a moral, a religião, a metafísica e todo o resto da ideologia, assim como as formas de consciência que lhe correspondem, perdem logo toda aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; são, ao contrário, os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, seus pensamentos e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.

No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como sendo indivíduo vivo; no segundo modo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais e vivos e se considera a consciência unicamente como sua consciência.


MARX, L’ideologie allemande, ( a ideologia alemã), 1ª parte. Editions sociales, pp. 34-47 Citado em: VV.AA. Os filósofos através dos textos. De Platão a Sartre. [tradução Constança Terezinha M. César] São Paulo: Paulus, 1997. p.253-254.