segunda-feira, 5 de maio de 2014

O direito de sonhar


O direito de sonhar não consta entre os trinta direitos humanos
que as Nações Unidas proclamaram em fins de 1948.
Mas se não fosse por ele, e pelas águas que dá de beber,
os demais direitos morreriam de sede.
Deliremos, pois, um pouquinho.

O mundo, que está de pernas pro ar, se colocará sobre seus pés:
Nas ruas, os automóveis serão pisados pelos cachorros.
O ar estará limpo dos venenos das máquinas,
e não terá mais contaminação
do que a que emana dos medos humanos e das humanas paixões.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel,
nem serão programadas pelo computador,
nem serão compradas pelo supermercado,
nem serão assistidas pela televisão.

A televisão deixará de ser
o membro mais importante da família,
e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.
As pessoas trabalharão para viver,
ao invés de viverem para trabalhar.

Em nenhum país serão presos
os jovens que se negarem
a prestar o serviço militar,
e sim os que quiserem prestá-lo.
Os economistas não chamarão
nível de vida ao nível de consumo,
nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.

Os cozinheiros não acreditarão
que as lagostas gostam de serem fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão
que os países gostam de ser invadidos.
Os políticos não acreditarão que
os pobres gostam de comer promessas.

O mundo já não estará em guerra contra os pobres,
e sim contra a pobreza,
e a indústria militar não terá outro remédio
a não ser declarar-se em falência para sempre.
Os meninos de rua não serão tratados como se fossem lixo,
porque não haverá meninos de rua.

Os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro,
porque não haverá meninos ricos.
A educação não será o privilégio de quem puder pagar.
A polícia não será a maldição de quem não puder comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas,
voltarão a se juntar, bem juntinhas, costas com costas.

Uma mulher, negra, será presidente de Brasil
e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América.
Uma mulher índia governará a Guatemala e outra, o Peru.

Na Argentina, as “loucas” da Praça de Maio
serão um exemplo de saúde mental,
porque elas se negaram a esquecer
em tempos de amnésia obrigatória.
A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas
das pedras de Moisés.

O sexto mandamento ordenará: “Festejarás o corpo”.
O nono, que desconfia do desejo, o declarará sagrado.

A Igreja também ditará um décimo-primeiro mandamento,
que o Senhor havia esquecido:
“Amarás a natureza, de que és parte”.
Todos os penitentes serão celebrantes,
e não haverá noite que não seja vivida como se fosse a última,
nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro.

Por: Eduardo Galeano


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