(...) Sinto o mundo inteiro embaixo de mim, um mundo vacilante
e desmoronante, um mundo gasto e polido como o crânio de leproso. Se houvesse
um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não lhe restaria um
palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem assim aparece, o mundo cai
sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos
demais, humanidade supurada demais para que o homem possa florescer.
A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme
e trêmulo. Se com intervalos de séculos aparece um homem de olhar desesperado e
faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova
raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um
flagelo.
Se de vez em quando encontramos páginas que explodem,
páginas que ferem e queimam, arrancam gemidos, lágrimas e pragas, sabemos que
elas provêm de um homem com as costas na parede, um homem cuja única defesa
restante são suas palavras, e suas palavras são sempre mais fortes que o peso
mentiroso e esmagador do mundo, mais
fortes que todos os ecúleos e rodas que os covardes inventam para esmagar o
milagre da personalidade.
Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há em seu
coração, expressar o que é realmente sua experiência, o que é realmente sua
verdade, penso que o mundo se despedaçaria, que se reduziria a pedacinhos e
nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente
os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do
mundo. (Trópico de Câncer)
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