O existencialista,
pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque
desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível;
não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma
consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma
que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que
precisamente estamos agora num plano em que há somente homens.
Dostoiévsky
escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Aí se situa
o ponto de partida do existencialismo.
Com efeito, tudo é
permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que
não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue.
Antes de mais nada,
não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não
será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e
imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é
liberdade.
Se, por outro lado,
Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos
legitimem o comportamento. Assim não temos nem atrás de nós, nem diante de nós,
no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem
desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre.
Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez
lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer. (...)
O existencialista
não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a
terra, e que o há de orientar; Porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse
sinal como lhe aprouver. Pensa portanto que o homem, sem qualquer apoio e sem
qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse
Ponge num belo artigo: "O homem é o futuro do homem".
É perfeitamente
exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que
Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem isso seria um futuro. Mas se se
entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o
espera, então essa frase está certa. Mas em tal caso o homem está desamparado.
O quietismo é a
atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo eu não posso fazer.
A doutrina que vos apresento é justamente a oposta ao quietismo visto que ela
declara: só há realidade na ação; e vai aliás mais longe, visto que acrescenta:
o homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se é portanto
nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida.
De acordo com isto
podemos compreender por que a nossa doutrina causa horror a um certo número de
pessoas. Porque muitas vezes não têm senão uma única de suportar a sua miséria,
isto é, pensar "as circunstâncias foram contra mim, eu muito mais do que
aquilo que fui; é certo que não tive um grande amor, ou uma grande amizade, mas
foi porque não encontrei um homem ou uma mulher que fossem dignos disso, não
escrevi livros muito bons, mas foi porque não tive tempo livre para o fazer;
não tive filhos a quem me dedicasse, mas foi porque não encontrei o homem com
quem pudesse realizar a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim e
inteiramente viáveis, inúmeras disposições, inclinações, possibilidades que me
dão um valor que da simples série dos meus atos se não pode deduzir".
Ora, na realidade,
para o existencialista não há amor diferente daquele que se constrói; não há
possibilidade de amor senão a que se manifesta no amor, não há gênio senão o
que se exprime nas obras de arte; o gênio de Proust é a totalidade das obras de
Proust; o gênio de Racine é a série das suas tragédias, e fora disso não há
nada; por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma nova tragédia,
já que precisamente ele a não escreveu? Um homem embrenha-se na sua vida,
desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada.
Que significa aqui o
fato de a existência preceder a essência? Significa que o homem primeiramente
existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define.
O homem, tal como o
concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é
nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não
há natureza, visto que não há Deus para a conceber.
O homem é, não só
como ele se concebe, mas como ele quer ser; como ele se concebe depois da
existência, como ele se deseja após este impulso para a existência, o homem não
é mais do que o que ele faz de si mesmo. Tal é o primeiro princípio do
existencialismo.
É também a isto que
chamamos subjetividade e pelo que somos censurados sob o mesmo nome. Mas que
queremos dizer com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma
pedra ou uma mesa? Pois o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe,
ou seja, que o homem, antes de mais nada, se lança para um futuro, e que é
consciente de se projetar no futuro.
O homem é, antes de
mais nada, um projeto vivido subjetivamente, ao invés de ser um creme, qualquer
coisa podre, ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada
há no céu inteligível, e o homem será antes de tudo o que ele houver projetado
ser. Não o que ele quiser ser. Pois o que vulgarmente entendemos por querer é
uma decisão consciente que, para a maior parte de nós, é posterior ao que
alguém fez de si mesmo. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro,
casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais
original, mais espontânea daquilo que se chama vontade.
Mas se
verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por
aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo
homem de posse do que ele é e atribuir-lhe a responsabilidade total por sua
existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não
queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas
que é responsável por todos os homens. Há dois sentidos para a palavra
subjetivismo, e é com isso que jogam nossos adversários. Subjetivismo quer
dizer, de um lado, escolha do sujeito individual por si próprio; e, por outro,
impossibilidade do homem em superar a subjetividade humana. O segundo é que é o
sentido profundo do existencialismo.
Quando dizemos que o
homem se escolhe, queremos dizer que cada um de nós se escolhe; mas, com isso,
também queremos dizer que, ao se escolher, ele escolhe todos os homens.
Com efeito, não
existe um ato nosso que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo
tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser.
Escolher ser isto ou
aquilo é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, pois nunca podemos
escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós
sem que o seja para todos.
Se a existência, por
outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo em que
construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa
época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor,
porque ela envolve a humanidade.
J.-P. Sartre (O existencialismo é um
Humanismo)
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