sexta-feira, 16 de agosto de 2019

O maldito poeta anarquista


“Tudo muda e nada muda”. Com licença, meus caros, pois esta é a poesia de Lawrence Ferlinghetti, 99. Lançado em 1958, na livraria City Lights, em São Francisco, a obra Um Parque de Diversões, a qual esses versos fazem parte, é tida como um de seus livros mais cultuados do expoente da geração beat. Na poesia ferlinghettiana é comum abordagens de temas com cunho políticos e sociais. Durante a década de 1980, publicou o romance Amor e revolução, que narra a história de um banqueiro revolucionário que vivia em conformidade com o espírito burguês.
Apesar de começar esta matéria citando um poema que faz parte de Um Parque de Diversões, não quero propriamente discorrer sobre isso. Após mergulhar de cabeça na bibliografia dos beats Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac, inclusive provando algumas experiências tal como os mestres fizeram outrora, umas publicáveis, outras nem tanto, consigo parar um momento e refletir: a literatura beat é sim coisa de primeira. E o livro Amor nos Tempos de Fúria, lançado no Brasil em 2012, segue nessa mesma toada e, com isso, fisga o leitor da primeira à última linha.
Paris, 1968. Os estudantes da universidade parisiense Sorbonne tomaram as ruas para protestar, discursar e pichar palavras de ordem contra o general Charles De Gaulle, reacionário que combatera na Segunda Guerra. A eles uniram-se trabalhadores, artistas e músicos, sendo o estopim para uma das maiores revoltas da história. Com esse pano de fundo, Ferlinghetti idealiza o encontro entre Annie, pintora estadunidense, passional e idealista, e Julien, um cético banqueiro português que se diz anarquista de coração, assim como no famigerado livro Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa, publicado em 1922.
O escritor demonstra todo seu talento para a prosa ao narrar a complicada história entre Annie e Julien. Entrelaçando um enredo íntimo de seus personagens com conflitos sociais que aconteceram naquele período, Ferlinghetti faz também uma espécie de síntese das questões políticas, sociais e artísticas que marcaram toda uma geração. Em Montparnasse, no La Couple, em Paris, no fim da noite, o leitor logo nas primeiras páginas é apresentado à protagonista. Narrado em terceira pessoa, em fluxo de consciência, o beat coloca-nos no centro do caos que estava instaurado na cidade da luz.
TÔNICA
Críticas aos sistemas totalitários, como ao fascismo do ex-socialista Benito Mussolini, que vigorara na Itália durante a década de 1930, e ao nazismo do artista plástico frustrado Adolf Hitler, que provocara a Segunda Guerra Mundial, são a tônica de vários textos que Ferlinghetti escreveu ao longo das últimas seis décadas. Lê-lo é indispensável nesses tempos em que o autoritarismo vem ganhando força na sociedade brasileira com candidaturas caricatas que semeiam discursos de ódio e fazem uma ode de extremo mau gosto à Ditadura Militar.
Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, no dia 7 de setembro de 2016, Ferlinghetti disse que o anarquismo – ideologia política que teve Mikhail Bakunin como principal expoente – sempre foi um ideal, e não uma ideologia. “Ele nasceu no século XIX, e nessa época o mundo não tinha um terço das pessoas que tem hoje. O anarquismo era possível quando não havia populações grandes”, explicou, na ocasião. “Mas hoje, a não ser que você tenha alguma forma de governo, as pessoas vão acabar matando umas às outras. De qualquer forma, é isso que começa a acontecer”, disse.
Sobre a autobiografia One Stream of Consciousness que está escrevendo, aos 99 anos, Ferlinghetti contou que o ideal seria chamar a obra de “romance-memória”. “A parte autobiográfica é desde quando sou menino e segue até tudo o que tenho a dizer como adulto. No fim das contas, sou uma criança que ficou velha e está quase cega. Esse é o fim. Não é ficção, é vida real. Não gosto do termo ficção, você diria que Cem anos de Solidão é uma ficção?”, completa. O poeta disse ainda que “o poeta por definição é um inimigo do Estado”.
Na entrevista, Ferlinghetti falou que o escritor William Burroughs, autor do clássico Almoço Nu, de 1959, “era como tanto outros doidões” na época em que os beats frequentavam a livraria City Lights. “Achei que expressava uma mentalidade de doidão, cheia de morte e ódio. Burroughs era “el hombre invisible”, veio à livraria mais de uma vez para fazer leituras, mas você via que ele não estava lá. Era como tanto outros velhos doidões, que estão presentes fisicamente, mas não estão presentes de fato. Eu nunca entrei na mesma onda que ele”, comentou à Folha.
VIDA
Lawrence Ferlinghetti nasceu em Yonkers, no Estado de Nova Iorque, em 1919. Filho de italianos, seu pai morreu antes dele nascer, e sua mãe foi internada em função de problemas nervosos quando o poeta ainda era pequeno. Foi criado por uma tia materna e passou cinco anos de sua infância na França. Ao retornar para os Estados Unidos, ingressou em várias escolas até entrar na University of North Carolina, onde estudara Jornalismo. Publicou suas primeiras histórias na revista cultural Carolina Magazine.
Durante o verão de 1941, Ferlinghetti morou com amigos em uma pequena ilha no Maine. A experiência o aproximou do mar, que se tornou um dos temas recorrentes em sua obra. Em seguida, entrou para a marinha norte-americana. Serviu na Segunda Guerra Mundial, participando da invasão da Normandia, na França. Depois trabalhara por um breve período na revista Time, antes de voltar para a Columbia University, de Nova Iorque. Nela, conseguiu a titulação de mestre em literatura inglesa. Doutorou-se pela Sorbonne, em 1950, com menção honrosa.
Retornou para o EUA, em 1951, onde instalou-se em São Francisco. Passou a dar aulas de francês, traduzir, pintar e fazer crítica de arte em jornais. As primeiras traduções que fez foram publicadas na revista cultural City Lights, por Peter D. Martin, que se tornaria sua sócia na mítica livraria de mesmo nome. Um ano depois da saída de Martin, fundou a editora City Lights e lançou sua primeiro livro, Pictures of the Gone World, primeiro volume da Pocket Poets Series.

Poema de Lawrence Ferlinghetti

Tudo muda e nada muda.
Séculos findam
e tudo continua
como se nada findasse.
Como nuvens estáticas a meio-vôo
Como dirigíveis presos contra o vento.
E a urbana febre das feras do cotidiano
ainda domina as ruas. Mas ouço cantarem
ainda agora as vozes dos poetas
mescladas ao grito das prostitutas
na velha Manhantan
ou na Paris de Baudelaire,
chamados de pássaros ecoam
nas ruelas da história
renomeados.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Poemas de Boris Pasternak

VENTO

Eu acabei e tu estás viva. 
E o vento, queixando-se e chorando, 
abana a casa e as árvores à volta. 
Não cada pinheiro isoladamente, 

mas todas as árvores juntas 
de todos os infinitos distantes, 
como navios ao sabor das correntes 
nas baías brilhantes ancorados. 

E isso não por audácia 
ou por frenesia insensata, 
mas para na melancolia encontrar as palavras 
para a tua canção de embalar. 

É assim que começam. Pelos dois anos 
separam-se da ama para o enigma das melodias, 
gorjeiam, assobiam, - e as palavras 
surgem por volta dos três anos. 

É assim que começam a entender. 
E no ruído pior que uma turbina 
parece que a mãe não é mãe, 
que eles não são eles e a casa é outra. 

Que fazer da terrível beleza 
que se senta no banco lilás? 
Realmente quer roubar crianças? 
E assim nascem as suspeitas. 

Assim amadurecem os receios. Aceitar 
a estrela alta inatingível, 
quando se é Fausto, quando se é visionário? 
E assim começam os ciganos. 

É assim que se abrem, voando alto 
sobre as cercas, onde estão as casas ausentes, 
dos mares súbitos como suspiros. 
É assim que nascerão os jambos. 

Assim nas noites de Verão, de barriga 
na areia, e a súplica: Seja! 
Ameaçam a aurora com a tua pupila. 
E até se atrevem a discutir com o sol. 



SILÊNCIO

Ainda não é nascida.
É só canção e poesia,
E está em plena harmonia
Com tudo o que é vida.

O seio da onda arfa em paz,
Mas como um louco brilha o dia
E a espuma pálido-lilás
Jaz no azul-névoa da bacia.

Que em meus lábios pairasse
A quietude original
Como uma nota de cristal
Pura desde que nasce!

Volve … poesia e a canção,
Sê só espuma, Afrodite,
Coração, desdenha o coração
Que com vida coabite!


quinta-feira, 4 de abril de 2019

CLARICE LISPECTOR

O que me tranquiliza 
é que tudo o que existe, 
existe com uma precisão absoluta. 
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete 
não transborda nem uma fração de milímetro 
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. 
Tudo o que existe é de uma grande exatidão. 
Pena é que a maior parte do que existe 
com essa exatidão 
nos é tecnicamente invisível. 
O bom é que a verdade chega a nós 
como um sentido secreto das coisas. 
Nós terminamos adivinhando, confusos, 
a perfeição.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Edgar Allan Poe: O Corvo


Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso 
Batestes, não fui logo, prestemente, 
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso 
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranquilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(Tradução de Machado de Assis)

sábado, 6 de outubro de 2018

Machado de Assis: A Sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas)

Meus senhores,
Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão com que acudistes ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, — e fora ingratidão ignorá-lo, — que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas.
Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei então, — e, a não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, — por uma razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do padre Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior.
Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar regímen social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, como vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu.
Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua propriedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de admiração em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho, entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta sutileza estudou a vida psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo.
Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintática, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças para arremeter a um trabalho, que hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem.
Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu aracnídeo, e a análise da língua. O objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um protesto em tempo; e, isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa atenção.
Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinqüenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: — o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-me ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música.
Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, — o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade.
Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.
A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo, essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado “das inscrições”. No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.
A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembléia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas.
Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido, misto e central, com este postulado: as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto-curvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime os bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas, duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo.
Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as inscrições.
Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na assembléia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a idéia das malhas. A assembléia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regímen anterior; mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome do candidato.
Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, — o qual provou a coisa nestes termos:
— Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede; há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra senão chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica e a forma sônica; k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. — Cane. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases, modificações, conseqüências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome Caneca.
A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consigo uma conseqüência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos mais circunspetos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado de notificar a última resolução legislativa às dez damas, incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses.
— Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Trecho do conto: A Cidade das almas adormecidas

Só a imaginação humana, em sua louca carreira ascendente às regiões do abstrato, pode colocar a Eros na abrupta montanha em que se achava.
Sobre a base de sua cúspide se estendia, como alguma coisa enigmática e inescrutável, a Cidade das Almas Adormecidas, onde moravam os “homens”.
E assim, em perpétua intangibilidade, viveu Eros por espaço de muitos séculos à margem dos que o haviam criado.
Mas chegou o dia em que o deus do Amor se transformou de divino em humano, e disse a seu coração:

– Estou cansado de minha solidão e destas alturas; quero descer até os homens e saber de que maneira vivem. Já é hora – seguiu dizendo – de que mitologia divina criada pelos gregos conheça algo que seja relativo ao mito humano universalizado.

E Eros, com passos firmes e longos, foi descendo da montanha até chegar ante as portas da grande Cidade das Almas Adormecidas. Sobre o pórtico havia uma inscrição, em que se lia: “Europa, Ásia, África, América e Oceania.”

– Alfa! – gritou Eros, e as portas se entreabriram.
O tempo (um ancião de longas barbas prateadas) fez a sua aparição naquele momento e perguntou-lhe:

– Que buscais entre os que dormem?
– Busco aos homens. Que me dizeis deles?
– E que poderia dizer-vos? Entrai e podereis apreciar como vivem, já que a isso chamam viver.

O Tempo abriu as portas, par a par, e Eros em companhia do ancião pôde penetrar no interior da Cidade das Almas Adormecidas.
Um odor húmido, penetrante, semelhante a infinidade de gerações reduzidas a pó, se percebia por todas as ruas e praças.
Sobre a base de um magnífico mausoléu, que servia de pedestal à figura de um herói morto em holocausto à pátria, jazia cravado um enorme ataúde.

– O que contém esta caixa? – perguntou Eros ao Tempo.
– Os restos das civilizações passadas- respondeu aquele.
– Das civilizações passadas?
– Sim, isto é, dos homens que, segundo eles trouxeram as primeiras luzes à Humanidade.
– Falaste de luzes resplendores*?
– Sim.
– Não compreendo. Minha vista é muito aguda e, não obstante, em redor, só vejo luzes extintas. Porém, vejamos – insistiu de novo Eros. – Quem dirigiu o Destino dos povos na Antiguidade?

– Sacerdotes, reis e imperadores. Que outros personagens podem fazê-lo? Eles legaram às gerações futuras páginas brilhantes para a História, nas quais as grandes conquistas de povos e continentes inteiros sucediam-se umas às outras com prodigiosa rapidez. A Antiguidade – seguiu dizendo o Tempo – foi pródiga em heróis. As condecorações choviam sobre o peito dos reis e imperadores como uma coisa prodigiosa.
Calou-se o Tempo.

Eros, entretanto, reflexionava sobre o que ouvia. E, finalmente, inclinou-se sobre o ataúde e, levantando a tampa, pôs-se a examinar o interior.
Ossos, túnicas e metais preciosos se confundiam em uma massa compacta; porém, o que mais chamou poderosamente a atenção de Eros foi um montão de coroas reais, cetros, cruzes oficiais e outras muitas condecorações de Estado que havia sobre um ângulo de caixa.
E, à vista de tantos ornamentos, pediu ao Tempo que o conduzisse a outros lugares menos silenciosos, porque alí começava a aborrecer-se.
Acedeu o tempo; porém, no momento em que se dispunham a abandonar o lugar, um furacão sacudiu violentamente o ataúde, despejando-o.
E produziu uma coisa assombrosa, imprevista.
Do interior daquele montão enorme de despojos, saíam, em estrepitosa sinfonia, gritos agudos, queixas, risadas de loucos.
Por debaixo dos escudos, coroas e demais ornamentos governamentais, corria um caudaloso rio de sangue humano, e, por entre o sussurro das águas rubras, percebiam-se mães desesperadas, um rumor surdo que era todo um poema de dor humana.

– Que significa tudo isso? – perguntou Eros aterrorizado.
– Significa o fruto, o resultado de todas as conquistas, de todas as vitórias do homem sobre si mesmo. – respondeu o Tempo.
E Eros disse ao próprio coração:

– Onde os homens só vêem louros e vitórias, unicamente, crimes.
– Feche esse ataúde – continuou – que só ossos e horrores contém, e deixemos os nossos antepassados dormindo eternamente, já que nos legaram, somente, obras defeituosas e monstruosos crimes. Sigamos ao lugar onde existem os homens vivos, se é que ainda existem nesta silenciosa cidade.

Passados instantes, achavam-se ambos ante enorme edifício, onde uma multidão informe movia-se ao compasso de um ritmo estranho.

Máquinas, muitas máquinas; buzinadas, fábricas, ateliês, homens, coisas: tudo se confundia naquele local em contínuo tropel.
E o Tempo, dirigindo-se a Eros, disse-lhe:
– Eis aqui os que vivem, os homens atuais. Vivem em sociedades dirigidas por um Estado.

A Cidade das almas adormecidas – FELIX LÁZARO

Vários autores. PRADO, Antonio Arnoni (org.); HARDMAN, Francisco Foot (org.); LEAL, Claudia Feierabent Baeta (org.). Contos anarquistas. Editora Martins Fontes.