quarta-feira, 29 de abril de 2015

POEMA EM LINHA RETA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às crianças de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda gente que conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há nesse largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sidos traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa


terça-feira, 28 de abril de 2015

COMUMENTE É ASSIM


Cada um ao nascer
traz sua dose de amor,
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
Sobre o coração levamos o corpo,
sobre o corpo a camisa,
mas isto é pouco.
Alguém
imbecilmente
inventou os punhos
e sobre os peitos
fez correr o amido de engomar. Quando velhos se arrependem.
A mulher se pinta.
O homem faz ginástica
pelo sistema Muller.
Mas é tarde.
A pele enche-se de rugas.
O amor floresce,
floresce,
e depois desfolha.


segunda-feira, 27 de abril de 2015

Sobre um Poema


Um poema cresce inseguramente 
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder 

quinta-feira, 26 de março de 2015

Sintonia para pressa e presságio


Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Literatura: uma folha em branco.

A literatura, que tanto nos encanta com suas páginas preenchidas por letras, é, antes de tudo, uma folha em branco. Os rabiscos traçados, em 180 laudas, parecem-nos poucos para uma leitura de domingo. Conquanto, o exercício da escrita se dá pelo cultivo do deserto como um pomar à avessas - emprestando, à estrofe "Cabraliana", uma interpretação própria. Acaso não fora o escultor quem nos dissera que a escultura está no objeto primitivo, e que lhe cumpre somente retirá-la do seu cerne?

Gabriel García Márquez, e tantos outros, já falaram da angústia frente à folha esbranquiçada. É, contudo, no vazio que a literatura vivifica-se. É no pomar às avessas que, mesmo latente os frutos, entrevê-se maravilhosas maçãs a espera de mãos prontas para colhê-las da fonte.

Então, nada mais destila;
evapora; onde foi maçã
resta uma fome;

Onde foi palavra
(potros ou touros contidos)
resta a severa forma do vazio.

Cultivar, pois, o deserto como um pomar às avessas é prenunciar - e aguardar - a frutificação do estéril. Restará uma fome; sim, uma boca vazia. Para saciá-la, eis que uma maçã. O sumiço da palavra. O surgimento do vazio. Então, do nada, a palavra; o retorno de letras que se aglutinam. A criação advinda do vazio - que agora preenche o papel de conjecturas e de dores próprias e improváveis.


Breno S. Amorim

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Mais náufragos que navegantes


Oh! Águas abissais!
Que exílio refugia-se em tuas profundezas?
Abrigai, por acaso, os ermos navegantes ou os náufragos da rotina?
Vós desvelareis algum dia  vosso latíbulo?
Porque, agora, para além-mar, desejos inconfessos seguem à deriva,
Afugentando do caís os exploradores de mistérios
Que seguiram para o infinito onde rumam teus afluxos.

Adão Lima de Souza
Do Livro A Vela na Demasia de Vento

A poesia


Estranha arte, a poesia!
Desenho do indizível
Numa combinação fonética!
Arquitetura onírica,
Perfeita, patética
De um mundo só e intraduzível
Senão pela palavra tempo.

Adão Lima de Souza

Do Livro A Vela na Demasia de Vento