segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Alma bissexta


Oxalá! Seja-me a vida nefasta
Como é minha alma bissexta.
Pois sou pessoa cruel, funesta
De quem toda compaixão se afasta
Atraindo a vilania, a indecência
De um amar sem indulgência.

Só alguém sem dignidade, respeito
Tão volumosamente vil e repugnante
Tanto que em todo lugar, a todo instante
Demonstra pelos amigos despeito,
Por inveja e mediocridade,
Não merece nenhuma hombridade.

Não poder sequer dizer-se homem
Por não ser civilizado
Tal sujeito rústico, mal lapidado
Ainda esmerado os defeitos não somem

Mereço terríveis castigos
Tal qual os mal feitores, outrora,
Morrer com horror e demora
Pregado na cruz pelos amigos
Isso ainda não redimiria todo pecado
Como foi com o inocente crucificado.

Se fosse punição maior a morte
Aceitaria com pesar, mas resignado
Pois se pena tão leve tivesse todo culpado
Já que é inevitável tal sorte
Sem se ponderar mais e mais se pecaria
E com regozijo a punição se pediria.

Porém, para tão vil alma,
Maior castigo é não morrer
Sentir remoço, perecer
Num movimento eterno e sem calma
Sentir por cada ato o mal em cada rosto
E sentir no corpo o flagelo do desgosto.

Adão Lima de Souza
Do Livro: A Vela na Demasia de Vento.


quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

VIOLETA DE OUTONO


Alain Badiou: análise do poema “Ode Marítima” de Fernando Pessoa.

Ah, ser tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! (Ode Marítima)


A Ode Marítima é imenso poema de arquitetura muito firme, mas muito complexo. Ele vai da solidão à solidão de modo que sua última palavra não é “nós”. A crueldade coletiva, exibida na imagem dos piratas, é uma passagem, certamente longa, quase uma ladainha, mas assim mesmo uma passagem, uma espécie de devaneio alucinado.

Podem-se distinguir sete momentos no poema.

1   1. Solidão da proferição: em Lisboa, um “eu” indeterminado, mas que  se encandeia no poema, olha, sob o sol do estuário do Tejo, o porto, o caís. Um guindaste gira no céu.

    2. Momento platônico. A solidão sai de si ao fazer advir uma ideia pura das coisas. Ela promove como essência de sua visão o “grande caís”., o caís essencial.

    3. Esse momento é desfeito pela entrada em cena de um múltiplo absolutamente furioso. Esse múltiplo cria apelo coletivo na direção do “nós”, quebra a solidão. 

 Apresento um excerto dessa cesura;

Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda parte pr’onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente.
Cuspir dos lábios o sal dos mares
Que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar
Das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
(...)
Ir convosco, despir de mim – ah! Põe-te daqui
De ações,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, extática, regrada e revista.


[...]

Por fim, a palavra fundamental de todo esse ataque é “com”, significante da absorção do “eu” num “nós” nômade. (...) Álvaro de Campos indica com lucidez a condição desse nomadismo coletivo: o despir da familiaridade, da instalação. Existe aí notação profunda, e que julgo exata: para que o indivíduo se torne sujeito, é preciso que supere o medo, o “medo inato das cadeias”, certamente, mas mais ainda o medo de perder  toda identidade, de ficar despossuído das rotinas do lugar e do tempo, da vida “regrada e revista”.  


4  4.   Vêm, como efeito do apelo que precede, a rebentação total do “eu” na multiplicidade-pirata, uma espécie de dilatação extática do sujeito pessoal num “nós” absolutamente cruel. Daí meu segundo extrato:

Ah! Os piratas! Os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis
E abomináveis, que rói como um cio abstrato os nossos
Corpos franzinos,
os nossos nervos femininos e delicados,
e põe grandes febres loucas nos nossos olhares
vazios!
(...)
Tomar sempre gloriosamente a parte submissa
Nos acontecimentos de sangue e
Nas sensualidades estiradas!

[...]

Essa passagem combina dois temas aparentemente contraditórios, a transgressão (“ânsia do ilegal”, “acontecimento de sangue” , “grandes febres”...) e a submissão ( “ a parte submissa”, os nervos femininos e delicados”, os “olhares vazios” ...). tudo isso vai ocasionar no poema a longa rapsódia masoquista, levada até a imaginação de um corpo esquartejado, espalhado, real em pedaços das “sensualidades estiradas”.
(...) a passividade, com efeito, é tão-somente a dissolução do “eu”, a renúncia a toda identidade subjetiva.


5    5.   De repente, interrupção. Como se o impulso de dissolução chegasse a um limite da imaginativa em matéria de crueldade e de submissão. E na sequência o “nós” se desfaz, e há uma como que regressão  melancólica na direção do “eu”.

6   6.  Entretanto, outro tipo de multiplicidade dilata ainda mais a força criadora do sujeito. Essa multiplicidade3 não é dinâmica, extática e cruel, como a dos piratas. É comercial e racional, atarefada, diligente. Álvaro de Campos dirá “burguesa”. Trata-se na verdade do momento humanista do poema. É desse sexto tempo que provém minha citação seguinte:

As viagens, os viajantes – tantas espécies deles!
Tanta nacionalidade sobre o mundo!
Tanta profissão! Tanta gente!
Tanto destino diverso que se pode dar à vida,
À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito
Para gente.
A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária.
É uma coisa que a gente aprende pela vida fora,
Onde tem tolerar tudo,
E passa a achar graça ao que tem que tolerar,
E acaba quase a chorar de ternura
Sobre o que tolerou!

Ah! Tudo isto é belo, tudo isto é humano
E ainda ligado
Aos sentimentos humanos,
Tão conviventes e burgueses,
Tão complicadamente simples,
Tão metafisicamente tristes!
A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar
No humano.
Pobre gente! Pobre gente toda gente!
(...)


[...]

Quando o poeta declara que “a fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária”, ele nos incita a distinguir a fraternidade propriamente dita , que é despir da vida legítima, abandono ao poder acontecimental do ‘nós’; e fraternidade derivada e corrompida, que é apenas humanismo piedoso, cuja fórmula é a tolerância com tudo, a aceitação das diferenças, os “sentimentos humanos” sobre os quais é particularmente justo dizer que são “metafisicamente tristes”, pois implicam renúncia a qualquer paixão pelo real.

7    7. Incapaz de incorporar-se ao humanismo, de dobrar sua palavra à tolerância universal tratada como escolha e ternura, o poeta retira-se para mais perto possível da figura inicial, a de uma solidão que sonda , de muito alto sobre o porto, o movimento circular de um guindaste.

[...]

Álvaro de Campos, por fim, pensa que de grande só há a partida, o impulso ilegal e multiforme que rompe a frouxidão corrente. Mas no devotamento ao múltiplo – a passagem do “eu” ao “nós” – tudo se deteriora em aceitação e em tolerância.  De modo que, pela mediação da submissão orgíaca e cruel, passamos no final de contas de uma frouxidão primeira ( o medo, a vida pacífica, sentada) a uma segunda frouxidão ( o humanismo religioso, burguês e tolerante), que em última análise vê por toda  a parte o homem e, portanto, conclui que há apenas “a vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma”.   


Trecho tirado do livro o Século, de Alain Badiou.
Adaptado por: Adão Lima de Souza.



quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Walt Whitman – Canção de Mim Mesmo

Walt Whitman foi um poeta, ensaísta e jornalista norte-americano, considerado por muitos como o "pai do verso livre". Paulo Leminski o considerava o grande poeta da Revolução Americana, como Maiakovski seria o grande poeta da Revolução Russa.


Canção de Mim Mesmo

Eu celebro o eu, num canto de mim mesmo,
E aquilo que eu presumir também presumirás,
Pois cada átomo que há em mim igualmente habita em ti.
Descanso e convido a minha alma,
Deito-me e descanso tranquilamente, observando uma haste da relva de verão.
Minha língua, todo átomo do meu sangue formado deste solo, deste ar,
Nascido aqui de pais nascidos aqui de pais o mesmo e seus pais também o mesmo,
Eu agora com trinta e sete anos de idade, com saúde perfeita, dou início,
Com a esperança de não cessar até morrer.
Crenças e escolas quedam-se dormentes
Retraindo-se por hora na suficiência do que não, mas nunca esquecidas,
Eu me refugio pelo bem e pelo mal, eu permito que se fale em qualquer casualidade,
A natureza sem estorvo, com energia original.

Casas e cômodos cheios de perfumes, prateleiras apinhadas de perfumes,
Eu mesmo respiro a fragrância, a reconheço e com ela me deleito,
A essência bem poderia inebriar-me, mas não permitirei.
A atmosfera não é um perfume, mas tem o gosto da essência, não tem odor,
Existe para a minha boca, eternamente; estou por ela apaixonado
Irei até a colina próxima da floresta, despir-me-ei de meu disfarce e ficarei nu,
Estou louco para que ela entre em contato comigo.
A fumaça da minha própria respiração,
Ecos, sussurros, murmúrios vagos, amor de raiz, fio de seda, forquilha e vinha,
Minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a passagem de sangue e de ar através de meus pulmões,
O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro,
O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do vento,
Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um abraço,
A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se agitam os ramos flexíveis,
O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos e colinas,
O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de mim mesmo erguendo-se da cama e encontrando o sol.
Achaste que mil acres são demais? Achaste a terra grande demais?
Praticaste tanto para aprender a ler?
Sentistes  tanto orgulho por entenderes o sentido dos poemas?
Fica esta noite e este dia comigo e será tua a origem de todos os poemas,
Será teu o bem da terra e do sol (há milhões de sóis para encontrar),
Não possuíras coisa alguma de segunda ou de terceira mão, nem enxergarás através dos olhos de quem já morreu, nem te alimentarás outra vez dos fantasmas que há nos livros.
Do mesmo modo não verás mais através de meus olhos, nem tampouco receberás coisa alguma de mim,
Ouvirás o que vem de todos os lados e saberás filtrar tudo por ti mesmo.

Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e sobre o fim,
Mas não falo nem do início nem do fim.
Nunca houve mais iniciativa do que há agora,
Nem mais juventude ou idade do que há agora,
E jamais haverá mais perfeição do que há agora,
Nem mais paraíso ou inferno do que há agora,
O anseio, o anseio, o anseio,
Sempre o anseio procriador do mundo.
Na obscuridade a oposição equivale ao avanço, sempre substância e acréscimo, sempre o sexo,
Sempre um nó de identidade, sempre distinção, sempre uma geração de vida.
Não vale elaborar, eruditos e ignorantes sentem que é assim.
Certeza tal como a mais certa certeza, aprumados em nossa verticalidade, bem fixados, suportados em vigas,
Robustos como um cavalo, afetuosos, altivos, elétricos,
Eu e este mistério aqui estamos de pé.
Clara e doce é minha alma e claro e doce é tudo aquilo que não é minha alma.
Faltando um falta o outro, e o invisível é provado pelo visível
Até que este se torne invisível e receba a prova por sua vez.
Apresentando o melhor e isolando do pior, a idade agasta a idade,
Conhecendo a adequação e a equanimidade das coisas, enquanto eles discutem eu mantenho-me em silêncio e vou me banhar e admirar a mim mesmo.
Bem-vindo é todo órgão e atributo de mim, e também os de todo homem cordial e limpo.
Nenhuma polegada ou qualquer partícula de uma polegada é vil e nenhum será menos familiar que o resto.
Estou satisfeito – vejo, danço, rio, canto;
Quando o companheiro amoroso dorme abraçado a mim a noite inteira e depois vai embora ao raiar do dia com passos silenciosos,
Deixando-me cestas cobertas com toalhas brancas enchendo a casa com sua exuberância,
Devo adiar minha aceitação e compreensão e gritar pelos meus olhos,
Para que deixem de fitar a estrada ao longe e para além dela
E imediatamente calculem e mostrem-me para um centavo,
O valor exato de um e o valor exato de dois, e o que está à frente?

Traiçoeiros e curiosos estão à minha volta
Pessoas com quem me encontro, os efeitos que a minha infância tem sobre mim, ou o bairro e a cidade em que vivo, ou a nação,
As últimas datas, descobertas, invenções, sociedades, autores antigos e novos,
Meu jantar, roupas, amigos, olhares, cumprimentos, dívidas,
A indiferença real ou fantasiosa de um homem ou mulher que eu amo,
A doença de alguém de minha gente ou de mim mesmo, ou ato doentio, ou perda ou falta de dinheiro, depressões ou exaltações,
Batalhas, os horrores da guerra fratricida, a febre de notícias duvidosas, os terríveis eventos;
Essas imagens vêm a mim dia e noite, e partem de mim outra vez,
Mas não são o meu verdadeiro Ser.
Longe do que puxa e do que arrasta, ergue-se o que de fato eu sou,
Ergue-se divertido, complacente, compassivo, ocioso, unitário,
Olha para baixo, está ereto, ou descansa o braço sobre certo apoio impalpável,
Olhando com a cabeça pendida para o lado, curioso sobre o que está por vir,
Tanto dentro como fora do jogo, e o assistindo, e intrigado por ele.
No passado vejo meus próprios dias quando suei através do nevoeiro com linguistas e contendores,
Não trago zombarias ou argumentos, apenas testemunho e aguardo.
(…)

Uma palavrinha sobre os fazedores de poemas rápidos e modernos


É muito fácil parecer moderno
enquanto se é o maior idiota jamais nascido;
eu sei; eu joguei fora um material horrível
mas não tão horrível como o que leio nas revistas;
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais
que não me deixará fingir que sou
uma coisa que não sou —
o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesia
e o fracasso de uma pessoa
na vida.
e quando você falha na poesia
você erra a vida,
e quando você falha na vida
você nunca nasceu
não importa o nome que sua mãe lhe deu.

As arquibancadas estão cheias de mortos
aclamando um vencedor
esperando um número que os carregue de volta
para a vida,
mas não é tão fácil assim—
tal como no poema
se você está morto
você podia também ser enterrado
e jogar fora a máquina de escrever
e parar de se enganar com
poemas cavalos mulheres a vida:
você está entulhando a saída — portanto saia logo
e desista das
poucas preciosas
páginas.


Charles Bukowski

As Flores do Mal de Charles Baudelaire

Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), poeta, boêmio e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.

Em 1857 é lançado o livro As flores do mal. Baudelaire é acusado de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos.

Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse.

Por: Adão Lima de Souza


A Destruição

Sem cessar a meu lado o Demônio se agita,
E nada ao meu redor como um ar impalpável;
Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita,
Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Às vezes, ao saber do amor que a arte me inspira,
Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos,
E, qual tartufo afeito às tramas da mentira,
Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos.

Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
Às planícies do Tédio, infindas e desertas,

E lança-me ao olhar imerso em confusão
Trajes imundos e feridas entreabertas
- O aparato sangrento e atroz da Destruição!

Poema do livro "As Flores do Mal". 


Charles Bukowski: O PÁSSARO AZUL


Há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.

há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você ?