O conto Sua Excelência nos chama a atenção para o fato irrefutável de
que, como o que diferencia uma pessoa de outra são sempre as posições sociais, pois
os indivíduos são iguais em essência e, em qualquer sociedade o mesmo ser
humano pode ser ministro ou cocheiro, pode ter “espetaculosos desejos” ou
“doridos queixumes”.
Portanto, “Temos que ler Lima Barreto porque não somos um país livre, somos
um país socialmente injusto, somos um país onde os pobres continuam pobres e as
elites continuam no lugar delas. Então, não é para aprender português que
se lê Lima Barreto; lê-se Lima Barreto para aprender a ser brasileiro.”
Dr. Antonio Arnoni Prado
O Ministro
saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera
a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando
bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos
circunstantes. Por isso entrara no cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar
se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos:
orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era
um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas
qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a
deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da
convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios.
Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos
ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido
até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que ele, ele só e unicamente, seria
capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham...
E ele sorriu,
quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de
imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de
ainda agora.
"Na vida
das sociedades, como na dos indivíduos..."
Que maravilha
Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho?
Recordou-se dele por inteiro:
"Aristóteles,
Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e
Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se
basear nos costumes..."
O olhar,
muito brilhante, cheio de admiração - o olhar do líder da oposição - foi o mais
seguro penhor do efeito da frase...
E quando
terminou! Oh!
"Senhor,
o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!"
A cerimônia
mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.
O auditório
delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe
que recebia as palmas da Terra toda.
O carro
continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo;
depois sumiram-se.
O veículo
agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que
seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde
eles pousassem.
Consultou o
relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída
da festa.
- Cocheiro,
onde vamos?
Quis arriar
as vidraças. Não pôde; queimavam.
Redobrou os
esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:
- Onde vamos?
Miserável, onde me levas?
Apesar de ter
o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja.
Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas.
Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da
China, o língam da Índia estavam ali, entre todas as outras intactas.
- Cocheiro,
onde me levas?
Não era o
mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com
uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.
- Canalha,
pára, pára, senão caro me pagarás!
O carro voava
e o ministro continuava a vociferar:
- Miserável!
Traidor! Pára! Pára!
Em uma dessas
vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo
quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de
um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.
O calor
aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor,
despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças.
Sufocado,
estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus
braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e,
ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca
cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde
saíra triunfalmente, não havia minutos.
Nas
proximidades um cupê estacionava.
Quis
verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.
Pelas escadas
de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os
degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas
grã-cruzes.
Logo que o
personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como
se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:
- Vossa Excelência
quer o carro?
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